Quando eu tinha 18 anos minha família havia se mudado para Santos, numa casa alugada de um português. A casa ficava ao lado da Escola Afonso Pena, uma escola particular de ensino fundamental. Naquele tempo, de 1ª à 5ª série (a última servia como cursinho preparatório para o ginásio). A casa era muito interessante, com caravelas esculpidas no telhado e uma cena pastoral de azulejos no muro. Havia um moinho de vento e fonte com repuxo, onde um menino esguichava água que vinha de um poço. O mecanismo da saída da água era movido pelo moinho de vento. Nós havíamos provido a fonte de peixinhos japoneses. Havia um jardim de inverno, lustres de cristal na sala e cenas pastorais pintadas pelo corredor e na copa. Era uma casa de personalidade. Nos fundos, uma réplica da casa da frente em tamanho reduzido servia de edícula. Ao lado dela e entrando para o terreno ocupado pela escola havia um barracão de madeira, onde os antigos moradores foram acumulando despojos: cadeiras de palhinha, espreguiçadeiras de lona, máquinas de datilografia quebradas, peças de vestuário feminino do final do século 19 (chapéus com penachos, golas de veludo, bolsas e sapatos) em arcas de madeira. Muitos figurinos dos anos 20. E o que mais me fascinava, livros. Livros de todos os tipos, encadernados caprichosamente ou não. Eu nunca havia sonhado com um lugar assim, um paraíso na terra. E como não podia deixar de ser, o paraíso na terra tinha um defeito: estava infestado de pulgas. Ninguém da minha casa, a não ser eu, se aventurava até lá. Eu ia, e nem queria saber das pulgas, que se aboletavam nas minhas pernas aos montes, vampiras sedentas por anos de clausura. Foi lá que li pela primeira vez os poemas de Florbela Espanca. Eles eram tentadores e impudicos para uma moça que se preparava para casar nos anos sessenta. Os poemas haviam sido datilografados de um livro e encadernados com uma capa de percalina preta. Lidos tantas vezes que acabei decorando alguns. Eu apelidei o lugar de Mistério. Todos de casa sabiam que quando eu sumia era lá que estava, campeando relíquias. Achei uma edição do livro Maravilhas do Conto Fantástico. Era meu preferido. Confesso que roubei o livro e o incluí no meu acervo, que não era grande. Por muito tempo o tive comigo, até que emprestei a um colega de trabalho, que nunca mais devolveu. O livro saiu do acervo, mas não do meu pensamento. Há uns 3 meses tive a ideia de procurar num sebo virtual e achei o tesouro. Comprei-o com o coração aos pulos e, quando o correio entregou no meu portão, não pude resistir, abrindo o embrulho ali mesmo, a face rosada pela emoção, os olhos embaçados de lágrimas ao constatar que eu era a mesma menina de dezoito anos, na porta do Mistério, prestes a uma nova descoberta.
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