sábado, 16 de julho de 2011

E para Laura, o que será?


Do canto da cozinha, onde largaram minha cadeira, ouço Genoveva cantando. As panelas borbulham no esquecimento, a cortina da janela se desprende e se agita com uma lufada do vento noroeste. Fui deixada aqui, à mercê de correntes de ar, cheiro de panela queimando e obrigada a ouvir suas canções horríveis. Ela tem uma bela voz de contralto, mas só canta músicas sertanejas da pior qualidade. Seus peitos enormes se balançam ao ritmo da música, os braços cheios de sabão, enquanto lava com cuidado as roupas delicadas do bebê. A máquina de lavar começa a centrifugar a roupa de cama e parece que vai sair dançando ao ritmo da música.

Meus ossos doem com qualquer movimento que tento fazer. Esta casa não é mais a mesma. Quando eu era criança, apostava corrida pela casa, até o poço no fundo do quintal e de volta até a sala. Contava o tempo no relógio de meu avô, um carrilhão que tocava a Ave-Maria às seis horas. Um dia os ponteiros nem se mexeram e já estava de volta. Naquele tempo não se praticava esporte na escola, uma menina precisava aprender a bordar e cozinhar. Mas eu queria muito ser um menino e pular pelo campo, subir nas árvores e atirar pedras na lagoa. Ninguém me alcançava, nem mesmo os meninos mais velhos.

O poço era o grande mistério. Não podia me aproximar dele, que todos os adultos que estivessem por perto gritavam: ”Sai daí, sua diabinha!”. Um dia empurrei Nanine lá dentro. Ele se agarrou na minha roupa e suas unhas despedaçaram a pele do meu braço, mas consegui. Gracinha, minha prima, vivia lendo livros de mistério e ensinava que o crime perfeito não deixa pistas. Eu precisava tentar, mas as unhas de Nanine no meu braço me colocaram no centro dos interrogatórios. “Essa menina não tem mesmo jeito, precisa ir pro colégio interno. Também, criada sem mãe, é isso que dá.” O colégio interno era a grande ameaça e eu tremia de medo ao pensar nos longos corredores, nas freiras vigiando, no silêncio obrigatório e nos quartos cheios de crianças rejeitadas pela família. Não foi ainda dessa vez que me mandaram para lá. Meu avô, que era quem decidia, mandou-me de castigo para o quarto por uma semana, só saindo para ir ao colégio. Nem as refeições pude fazer com a família. Enquanto meu irmão e Gracinha brincavam no quintal eu os via da janela, doente de inveja. Nessa semana li todo o Tesouro da Juventude. Uma vez ou outra Gracinha entrou no quarto e deitou-se comigo na cama. Nossos corpos se tocavam e eu passava minhas mãos na sua perna, subindo devagar. Seu hálito cheirava a hortelã e capim limão quando cobríamos a cabeça e nos tocávamos até dormir.

Faz muito tempo... Meus sobrinhos estão na sala assistindo televisão. Ela se move pela sala, pondo a mesa, correndo contra o tempo. Rodolfo já vai chegar para almoçar. Do meu canto eu a vejo correndo com as travessas, "criatura inútil, porque não avisou que as panelas estavam queimando?". Ela me odeia. Quando o canário morreu, tentou jogar a culpa em mim. Eu coloquei o pó de rato na ração do passarinho. Ele morreu em seguida e ela chorou o dia todo, mas nunca mais ia conversar com ele, nem ele pegar o alpiste sua boca, nem cantar para ela seu canto mais afinado.

Ela veio para casa depois do acidente, contratada para cuidar de mim. Suas mãos quentes faziam as massagens e ministrava os remédios e exercícios recomendados pelo médico. No hospital era toda sorrisos, paciente, carinhosa. Quando se instalou na nossa casa, nunca mais foi a mesma. Era muito profissional, mas só tinha olhos para meu irmão.

Durante o tratamento, meu corpo não reagiu. Eu havia caído da escada, a mesma que eu descia desde a infância em grande velocidade, sem nunca sequer ter tropeçado. As massagens só tinham um efeito sobre mim: fui ficando, pouco a pouco, ligada a ela de tal forma que no final a tiranizava. Seus dedos apertavam a minha pele e eu esquecia a dor, uma moleza me invadia e dormia de puro gozo. Ela tornava a me virar e massageava meus ombros e minhas pernas. Desde a queda, alguma coisa na coluna impedia que eu sentisse as pernas, que não reagiam com o tratamento ou as massagens, mas suas mãos no meu corpo me lembravam Gracinha embaixo da coberta, o pelo de Nanine quando eu sentava na cadeira de balanço, o gosto de vitória quando corria e os ponteiros do relógio nem se mexiam.

A mangueira no fundo do quintal, junto ao poço, é assombrada pelo fantasma do meu avô, que se enforcou nela quando perdeu tudo que tinha numa mesa de jogo. Eu o vejo, volta e meia, quando me esquecem no quintal e começa a anoitecer. Não conto a ninguém, ela já diz que sou louca, se contar me internam numa clínica moderna e me esquecem de vez. Linda Laura. Seu nome a representa perfeitamente, como disse meu irmão, quando a conheceu. Casou com Rodolfo três meses depois do acidente, porque estava grávida. Enroscavam-se pelos corredores, a todo momento. Um dia eu fingia dormir e eles rolavam no tapete ao lado da minha cama, ela soltava gritinhos quando Rodolfo mordia seus peitos, depois riram muito quando finalmente acordei e perceberam que ele havia se esquecido de vestir a cueca, que estava jogada sobre a cadeira de rodas. Meu corpo fervia e eu tive vontade de agarrá-la pelos cabelos, beijar onde ele mordia, roçar minhas pernas mortas nas pernas dela. Voltei a andar com muita dificuldade muito mais tarde, meus sobrinhos já engatinhavam pela sala. Ela havia deixado as massagens.

Eu odeio meu irmão, que me roubou as mãos dela, como me roubou Gracinha. Quando eu tinha treze anos ela se afogou no rio. Era domingo e havia o piquenique anual da escola. Rodolfo também estava lá, rodeado de meninas, como sempre. Gracinha não queria ir no barco. Só falava em Rodolfo. Trazia naquele dia um livro de Vinicius de Moraes, que ele lhe havia dado. Seus olhos nem me olhavam, absortos, enquanto eu remava e tagarelava sobre os planos que tinha para nós duas. No meio do rio eu quis tocá-la, mas ela reagiu e tirou minha mão de sua blusa com firmeza: “Eu tenho nojo de você”. Perdi a cabeça. Empurrei-a no rio. Desta vez não deixei provas. Esperei que afundasse na água por três vezes, porque era sim que meu avô dizia que acontecia com os afogados. Depois comecei a gritar e todos correram para a beira do rio. Um professor pegou a lancha que estava ancorada no trapiche e chegou um minuto depois dos gritos, mergulhou e não conseguiu achá-la. Seu corpo boiou dois dias depois, numa cidade abaixo de São Luiz do Purunã.

Ela continua pondo a mesa. Está chorando porque queimou a carne. Eu a ouvi conversando com Genoveva, “vou falar de novo com Rodolfo sobre a clínica, sim, ela está mesmo sem controle”. Não contei a ninguém que acho que já posso correr até o poço, como antigamente. Vão rir de mim. O bebê está no carrinho, bem perto, lindo e rosado. Os gêmeos continuam vendo televisão. Ela vê que estou perto da criança e a retira dali, com uma expressão de medo e de raiva. Ninguém acredita que posso subir as escadas e vê-la, quando toma banho demorado na banheira de meu avô, e volto antes que alguém perceba. Ninguém sabe que achei uma forma de manter Nanine meu para sempre. E Gracinha. Longe de Rodolfo e suas maldades.

A mesa esta posta, daqui a pouco ele vai chegar e nem vai olhar para ela, nem perceber seus olhos vermelhos, a boca oferecida na esperança de beijos. Preciso pensar em algum acidente para Linda Laura.