sábado, 20 de fevereiro de 2010

Quem afirma que as pedras têm que rolar, convém localizar-se.
Antes da inevitável queda é interessante reunir os bois,
vacinar os filhos, fechar as janelas e contar os vivos que restam.
Afinal, ainda que você diga que o sonho não acabou, eu sinto muito:
o cadáver apodrece na rua e o fedor incomoda.
Quem oculta as palavras possíveis e impede o parto do poema
que os olhos dela instalam no meu peito,
deve recolher os seus trapos, rever os apontamentos, pagar as contas,
arrumar a cama, procurar o padre e revelar sua última vontade.
E não corra, meu amigo: eu vou pega-lo.
Agora, veja bem, se você individualiza seu projeto e
tranca sua utilidade coletiva numa sala de espelhos,
melhor tomar cuidado: eu estou por perto e, tenha certeza, individualizarei teu funeral.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

VADE RETRO

As pedras das ruas são lisas, pretas e escorregadias, denunciando a idade da cidade. Uma cidadezinha muito velha, de calçadas estreitas e janelas que dão para a rua, facilitando a comunicação entre os passantes e os moradores das casas e, naturalmente, a bisbilhotice.
Dona Maricotinha viu sua vida passar olhando pela janela da casa. Casou-se duas vezes, da primeira teve um par de filhos que agora moravam na capital. Do segundo casamento, teve mais cinco, esses sim, todos ao seu redor, obedientes e tão novidadeiros quanto ela. Pois dona Maricotinha é quem sabe mais de todo mundo na cidade, sempre de doces sorrisos de avó, além dos próprios doces que vende pela janela o dia todo, enquanto colhe as notícias para passá-las adiante. Uma fofoqueira, como é conhecida pela maior parte dos habitantes.
Pois foi esse seu dom que livrou a cidade de uma grande calamidade. Contam a boca pequena, que ninguém pode mesmo saber se há fundamento, que chegou para morar na casa antiga do alto do morro um certo figurão, de cuja riqueza ninguém sabia a origem, mas de fama tal que despertou o interesse da alta sociedade da cidade. Essa alta sociedade se compunha de dois ou três causídicos, o juiz, o prefeito, uns tantos médicos, o delegado, o dono do cinema, do supermercado e das duas farmácias. E ainda suas respectivas filhas e mulheres, que imediatamente o classificaram de bom partido.
Pois então, quando esse homem aportou em Santa Maria das Dores, com seu lindo iate branco cheio de convidados bronzeados tomadores de champanhe, foi um frisson. Veio gente dos matos para ver e a banda foi convidada a tocar no cais do porto, enquanto os passageiros do iate olhavam divertidos a população em suas melhores roupas, abanando lenços para eles. Nesse dia foi oferecido pelo prefeito um lauto jantar no Iate Clube de Santa Maria das Dores, aberto somente aos sócios e aos novos habitantes e passageiros do barco. Foi uma farra com o dinheiro público, dizia dona Maricotinha aos seus clientes, enquanto virava os olhinhos de pardal.
Desde o início se tomou de grande antipatia pelo novo morador. Não sabia a origem de seu desassossego, mas o instinto lhe dizia que boa coisa ele não era.
As moças virgens e casadoiras filhas dos ricos da cidade prestavam homenagens ao galante e ilustre morador, mas ninguém podia se aproximar de sua casa. Convidados dele eram recebidos no Iate Clube, onde o presidente lhe garantia uma conta sem tamanho de gastos com lagostas e ostras finas, acompanhadas do vinho importado por Gomes&Gomes, Maria Gomes e José Gomes, os donos do supermercado. Vestidas como pinheirinhos de natal, as filhas bem nascidas disputavam a tapas a atenção do belo moço, de cujos olhos azuis se julgavam possuidoras.
Isso já ia de muitos meses, na farra sem fim de jantares no Iate Clube, conta protelada para quando “o meu contador chegar”. Dona Maricotinha se contorcia em cólicas, ora vejam, vocês não enxergam que o desconhecido é o dianho, o tibinga, o inominável? Pois alguém há aqui que lhe tenha visto os pés? Minha mãe já dizia, quer reconhecer o bicho, pois então lhe faça mostrar os pés.
Não adiantava nada falar, estavam todos possuídos pelo poder do desconhecido. A freguesia de doces começou a escassear, dona Maricotinha é contra o progresso. Ele prometeu-me emprego na capital, de motorista, outro de mordomo, outro ainda de médico chefe do hospital central. E seus doces encalhados foram parar no lixo, e cadê dinheiro pra sustentar aquela filharada sem emprego?
Por isso, e só por isso, decidiu dar um fim naquela comédia. Se eles não enxergavam, ela ia fazê-los ver bem de perto os sinais de que estavam adorando o coisa ruim. Chamou o padre e contou um plano. O vigário ficou louco de brabo, ameaçou interná-la, excomungá-la, onde se viu, um homem tão bom e generoso, havia escolhido a cidade para morar com seus queridos amigos. Dono de um iate daquele porte, de caixas e mais caixas de champanhe legítimo.
Resolveu valer-se dos filhos desempregados para a missão que Deus lhe destinou. Um baile havia sido marcado, onde seria coroada a Rainha do Festival da Primavera. Todas as moças sabiam que a escolhida por certo seria a eleita do ilustre morador da cidade. Para essa festa foram encomendadas as flores mais perfumosas, os peixes mais carnudos, as lagostas mais saborosas, o vinho mais caro. Gelo em abundância para o champanhe, roupas da melhor grife da capital. E os doces da sobremesa, quem vai fazer? Torciam o nariz, mas na cidade ninguém melhor que a velhinha fofoqueira para fazer doces, que sabiam aos manjares dos deuses.
Em comissão, as matronas foram à casa da esquina mais movimentada da cidade. Janelas fechadas, nenhuma bulha, e batem até que ela atende, como quem regateia acaba negociando um preço nem de longe sonhado, que lhe cobriria o prejuízo dos últimos meses. Mal sabiam que ela exultava no seu íntimo pela oportunidade de desmascarar o diacho do homem.
No cardápio, estavam incluídos os papos de anjo, os pasteizinhos de Belém, as queijadinhas, quindins, bem-casados e até os olhos de sogra, sua especialidade. Muita calda, sorvetes de cajá, de carambola, pudim de maracujá. E chegou o dia.
Dona Maricotinha na cozinha do Iate clube, espremida entre o cozinheiro francês trazido da capital pelo prefeito e os garçons vestidos de branco, passando com bandejas acima da cabeça e o nariz pro teto, rezava no seu terço de contas de vidro uma novena em intenção de Santa Maria das Dores, padroeira da cidade. Rezava e excomungava o cão, que lá no salão, se fazia acompanhar da cambada de puxa-sacos.
Chegou o grande momento da sobremesa. Ela mesma serviria, com os cinco filhos enfileirados e vestidos de pingüim, por ordem das autoridades presentes, arranjadoras da festa. Dona Maricotinha pendurou no pescoço um crucifixo que havia comprado para a ocasião, benzido pelo bispo e mandado pelo correio por um dos filhos da capital. Armou-se de água benta, colocada numa bacia de louça, onde espargiu gotas de água de colônia. Explicou para a mulher do prefeito, que estranhava aquela peça despropositada, que os convidados que comiam papos de anjo lambuzavam os dedos e precisavam lavar as mãos na água perfumada, o que era considerado muito chique pelas pessoas que freqüentavam a sociedade na capital.
Apresentou primeiro ao convidado de honra sua bandeja composta das melhores iguarias que havia preparado. Sua fama já havia chegado ao ilustre senhor, que todo faceiro separou num prato os papos de anjo, os quindins, as compotas de jaca. Foi um descuido? A velhinha tropeça na saia comprida e derruba sobre o convidado a água benta. Foi um estouro de enxofre, o fedor terrível tomou conta do ambiente, uma nuvem amarela cobriu tudo e levou bem uma meia hora até que todos, tontos e de olhos vermelhos, pudessem achar a saída do salão, correndo pelas ruas e chorando sem querer chorar lágrimas de puro enxofre.
Até hoje ninguém sabe dar conta do ilustre senhor e da sua corte. Muita moça casadoira jura que tudo não passou de um plano terrível daquela bruxa malvada para afastar o bom partido, mas quem estava ali jura que viu o capeta estourando em uma nuvem de fumaça, sumindo pra nunca mais.
Dona Maricotinha voltou a vender seus doces, enquanto se incumbe de passar as novidades da cidade. É respeitada pelo padre, pelo prefeito e demais autoridades, que recorrem a ela quando querem fechar negócios com estrangeiros e gente da capital.

Abobrinhas Psicodélicas: Política, Cultura, Críticas Corrosivas e Baratos Afins.

Abobrinhas Psicodélicas: Política, Cultura, Críticas Corrosivas e Baratos Afins.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Senhora

Ventania, senhora dos meus cabelos.
Hoje, estrelas de junco, verão não mais cabe em mim.
Hoje, estrelas de feno, faróis escondem meu corpo.
Estrelas de feno, de terra seca, de água suja, estrelas de ferro, de terra fértil,
de negros olhos grandes, estrelas de olhos, senhora das estrelas.
Estavas de branco, senhora dos meus amores,
de brancos dedos de prata dos meus dedos pegajosos.
Estavas de ares novos, senhora dos meus sonhos pegajosos.
Arestas, senhora dos meus olhos, arestas perigosas
e aranhas, senhora anti-corpo. Olhos pegajosos, senhora dos meus versos .
Em teu corpo, minha velha estrada, senhora dos meus ais, doces de açúcar mascavo,
doces dentes brancos, teclas brancas de piano.
Os muros altos, senhora dos meus atos, os gritos brancos, senhora dos meus espaços,
meu sonho, senhora do meu sono, grandes beijos, senhora da minha boca.
Senhora de grandes olhos negros em festa, senhora da minha pele,
e das montanhas, senhora das minhas naturezas,
e dos rios, senhora das minhas águas de eternas luzes brancas.
Senhora dos meus domínios, povo descalço, grande rio pegajoso,
dos meus vícios, dos meus dedos, dos meus horários, senhora das minhas necessidades,
das minhas idades, das letras, do barro pegajoso,
das lesmas, das lentas mortes, das lentes das minhas luzes apagadas,
das chuvas, de branco, senhora pacificada.
Senhora dos meus sonhos, imensos campos de trigo, terras secas, beijos, beijos,
dos meus intestinos, filha minha, irmã dos meus desertos, dos rios, dos vales,
senhora dos pedaços e dos ventos, dos relógios velhos, aposentados,
das notícias de sangue, senhora do meu sangue.
Das minhas pernas, das minhas almas, senhora das minhas armas brancas, dos meus fuzis,
dos lençóis, dos orgasmos, luzes apagadas, dos fenóis da minha interna química corporal,
das máquinas, das tintas, das fumaças, das cores dos vestidos verdes, velhos, vencidos,
dos vencidos, branca senhora dos olhos da noite.
Do drama do tango a média luz, dos semáforos, dos fósforos, das varandas,
dos retirantes, senhora dos pés descalços,
do trigo, de julho, das lãs, senhora dos apressados,
dos ares dos tempos, dos templos.
Senhora do meu espanto, eu te preciso,
mesmo com todos os meus erros de concordância e de inglês.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Mad About You

http://www.youtube.com/watch?v=8TnX88wkinI

Um lago azul no olhar

Do diário de Lucíola, sobre o encontro de Tânea com o passado.
19 de agosto – a caminho de Brasília.

Dentro do carro é um inferno quente, mas não adianta abrir a janela. Um caminhão me impede a ultrapassagem na estrada onde o asfalto é apenas uma lembrança, por isso decido parar no posto, que me anuncia ser a última oportunidade de comer decentemente. Além disso, meus cabelos estão duros da poeira e o ar condicionado do carro não funciona. O eletricista do posto diz que o conserto vai demorar pelo menos uma hora. Tudo bem, não tenho pressa. Abro o porta-malas e procuro na bagagem uma muda de roupa e toalha, pego a frasqueira e caminho até o banheiro. A ducha de água fria alivia o calor. Vejo a água levar para o ralo o pó da estrada. Os cabelos enrolados na toalha, visto com cuidado a roupa para não molhá-la no chão encharcado. Fora do chuveiro e dos reservados, um espelho de bom tamanho e uma bancada com tomada onde ligar o secador, é tudo que eu preciso para melhorar a aparência cansada de tantas horas rodando pelo cerrado. Procuro uma escova na frasqueira, mas não consigo me concentrar na busca, inquieta com a mulher ao meu lado que insiste em me olhar pelo espelho. Alguma coisa naqueles olhos azuis me lembra alguém. Uma mulher grande, vestida de cor turquesa, os cabelos claros crespos por uma permanente mal feita. Tem aparência de desleixo. Olha insistente e se aproxima com um sorriso acanhado. Seus dentes são bonitos e afinal consigo lembrar.
-Tânea – ela diz, e sua voz é a mesma de trinta e cinco anos.
Recordo muito bem quando a vi pela primeira vez. Era linda, com seus cabelos claros irradiando a luz, e esse mesmo sorriso de criança. Naqueles dias havia se casado e esperava um bebê.
-Eu nem acredito! Maria Augusta. No meio do nada – aquele estradão sem fim no cerrado.
Ela também não tem pressa. Está esperando um ônibus que só vai chegar dali a duas horas. Vai para São Paulo depois de morar em Cristalina por dois anos. Os filhos estão espalhados pelo Brasil e ela se divide.
Tanto tempo passado convida a confidências. Eu conto que fiquei viúva, que minha filha trabalha no gabinete do ministro, que estou de passagem, no mês que vem embarco para a África, agora sou missionária. Falo dos netos e abro a carteira para mostrar as fotos.
Ela me olha nos olhos e não posso deixar de me sentir incomodada. Deploro que tenha se transformado nessa pessoa e acho que ela percebe isso. Chora de repente e fico constrangida, não tenho o que dizer. O tempo nos tornou duas estranhas e sei que devia fazer algum gesto de aproximação, uma palavra de carinho, um toque nas mãos, mas só de pensar estremeço de agonia. Lembro que tenho lenços descartáveis na frasqueira e os ofereço. Ela enxuga os olhos e assoa o nariz ruidosamente. Acalma-se aos poucos e eu rezo para que pare logo.
Gostaria de não ter que ficar ali, que o carro estivesse pronto e então nos daríamos as mãos e desejaríamos felicidade. Eu seguiria em frente, ela também, e tornaríamos a nos esquecer, quem sabe para sempre. Mas não era assim que ia acontecer, eu sabia. Ela falaria do passado e iríamos lembrar de tudo.
-E como vai Otávio?- eu falo. Fui eu que toquei no assunto, como levada por uma força irresistível.
-Ele morreu. - ela diz. Eu respiro aliviada.
Na primavera de 1970 estivemos todos envolvidos num alucinado romance. Éramos voluntários num projeto com as tribos do Araguaia, promovido pela Universidade de São Paulo. Meu marido Otávio, antropologista, desenvolvia sua tese de mestrado. Eu o tinha acompanhado, decidida a escrever um livro sobre a luta dos índios pela posse da terra. Conhecemos Marcelo e Maria Augusta no acampamento. Faziam parte do Projeto Rondon. Ele era médico recém formado e ela ainda estudava sociologia. Estava grávida e perdeu a criança no primeiro mês no acampamento. Eu a admirei por não ter desistido do projeto. Durante algum tempo tememos por sua vida. Afundou-se na cabana, atendida pelas mulheres índias, recusando os serviços do marido, a pele branca quase transparente. Um dia a vi nadando com os curumins, nua como eles, numa grande algazarra. Havia se curado.
Enquanto durou o trabalho nos dedicamos de corpo e alma, mas no fim da estiagem as águas do rio nos obrigaram a um confinamento que durou dois meses. Nesse período de convivência incorporamos os hábitos da tribo de partilhar os companheiros, primeiro por tédio, depois por atração e quando as águas baixaram não sabíamos mais como sair daquela rede. Enquanto estivemos no Araguaia continuamos a viver dessa forma, mas o fim da missão obrigou-nos a escolha. Otávio, meu marido, confessou que estava irremediavelmente apaixonado por Maria Augusta. Os dois já haviam decidido que iam embora juntos.
Nos meses que se seguiram o mundo virou de cabeça para baixo. O projeto do livro foi esquecido e, já em São Paulo, não conseguia encontrar meu rumo. Fui procurada por um advogado que me apresentou os papéis da separação.
Marcelo sumiu na floresta. Durante muito tempo sua família e organizações de direitos humanos o procuraram, numa peregrinação por repartições e prisões, sem sucesso. Eu sabia que ele havia se ligado a um grupo de guerrilha que passou pelo acampamento no inverno de 1972, uns meses depois da minha partida, porque algumas pessoas que trabalhavam com Otávio costumavam me visitar, mas o assunto era tabu. Ficava às vezes pensando em como teria sido nossas vidas se eu nunca tivesse aceitado o convite para aquela aventura no meio da floresta. Talvez Marcelo ainda estivesse vivo.
Pedi a separação judicial à revelia de Otávio. Muito tempo depois consegui esquecer. Casei de novo, tive filhos, fiquei viúva.
-Quanto tempo faz?- eu volto a falar, sem perceber que entre a primeira pergunta e esta outra um tempo sem fim havia se passado.
-Vinte anos.
-Vocês foram felizes? – eu pergunto, e embora aparente indiferença, preciso mesmo saber a resposta.
-Um pouco, como todo mundo. Ele me deu quatro filhos.
-Como foi que ele...
-Morreu?Acidente, na floresta. Parece que era uma armadilha antiga para pegar jacarés. Ninguém sabe como, ele conhecia aquele lugar como ninguém.
Eu tive uma intuição de que não era só isso, pelo jeito como ela respondeu. As mãos nervosas torceram o lenço de papel.
E Marcelo? Ela tinha notícias dele? Quando vi já havia feito essa outra pergunta. Sou eu quem força a passagem e ela vai abrindo a porta, sem oferecer resistência.
-Não, nunca mais. Nem dele, nem da família, que decidiu não recebê-la quando voltou para São Paulo. Também, o que ela esperava?
Um café me faria bem. Preciso também comer alguma coisa para enfrentar o resto do dia. Faço o convite.
Ela faz um gesto com a mão – Eu não posso, tenho a pressão alta. - enxuga o rosto com o mesmo lenço de papel, o suor umedecendo a raiz do cabelo.
Nessa nossa conversa descubro aos poucos a menina que conquistou meu marido. Sua voz ainda é doce, as mãos acompanham a fala num balé delicado, sugerindo que eu a siga pelo tempo, em busca das explicações que não aconteceram. Fala um pouco das dificuldades que enfrentou para recuperar as anotações de Otávio, que viraram um livro póstumo muito procurado. Isso me surpreende, eu nunca tive notícias sobre esse livro. Anoto o título, prometo procurar nas livrarias.
Decido falar das minhas próprias dificuldades, perseguida e impedida de dar aulas até o final dos anos 80, mas não consigo ir muito além de umas poucas confidências, a mágoa adormecida teimando em permanecer no limbo, para não despertar fantasmas. Vem um café na bandeja, com o pão de queijo fumegando, e eu agarro a xícara como um náufrago aos restos da embarcação para não ter de continuar falando sobre tudo aquilo que é tão difícil recordar.
O tempo passou. O eletricista me entrega as chaves do carro, que está pronto para partir. Ela se apressa em me dar o endereço e telefone. Eu também lhe dou o meu, impresso no cartão da missão.
-Adeus – ela diz, com sua voz de menina. Olho seus olhos escondidos sobre dobras de gordura e eles têm o mesmo brilho de um lago sob o sol.
Um encontro com o passado. Um truque do destino, no meio do cerrado. De um lado a vegetação das estepes, do outro o posto ficando para trás pelo retrovisor, como a minha juventude no fundo dos olhos daquela mulher.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Madame Satã

Publicado no Portal do Luis Nassif, hoje, vale a pena reproduzir para quem quiser ler:
Não fosse o fato de ter matado o grande Geraldo Pereira, em uma briga, Madame Satã iria par ao céu.


Por Tartufo

Nassif,

quando estava pesquisando sobre o Meneghetti, tema de um post e muita discussão aqui no blog, eu encontrei essa entrevista antológica do Madame Satã, para o O Pasquim.

Entrevista que teve uma enorme repercussão por mais de década. E que me marcou e impressionou muito.

O ano era o tétrico 1971, eu era um moleque dividido entre duas perspectivas fundamentais e urgentes: montar uma banda de rock que só tocasse músicas dos Rolling Stones ou montar um grupo de teatro para encenar peças “politizadas e revolucionárias”.

A segunda prevaleceu e dura até hoje, obviamente com muito menos fervor cívico/revolucionário, porém com o mesmo tesão pelas artes cênicas.

Segue a íntegra da entrevista e o link.

http://www.tirodeletra.com.br/entrevistas/MadameSata.htm

Madame Satã

Entrevistado por Sergio Cabral, Paulo Francis, Millôr Fernandes, Chico Júnior, Paulo Garcez, Jaguar e Fortuna, para O Pasquim, de 05/05/1971, e republicada no livro ALTMAN, Fábio. A arte da entrevista. São Paulo: Scritta, 1995.

* * *

A personagem da entrevista desta semana era lenda no meu tempo de menino em Botafogo. Uma espécie de gunfighter da Lapa, fechando bares e enfrentando as terríveis Polícia Especial e D.G.I. (Departamento Geral de Investigações), que enchiam de pavor quem andasse nas ruas, coisa que os garotos da época, na maioria, faziam. E havia o paradoxo aparente de homossexualismo de Madame Satã. Aparente, sim, porque e Julio César, Alexandre o Grande, ou, próximo de nós, Heydrich e Goering? Pensar que violência é característica heterossexual não passa de balela primitiva.

Satã nos impressionou bastante, porque é um tipo completamente fora do nosso âmbito de experiência. Todos nós duvidamos de tudo, inclusive de nós mesmos. Convertemos nossos superegos em catedrais em que nos ajoelha­mos e pedimos perdão a nós mesmos, sem resultado. Satã tem certeza das coisas que faz. Eu disse, na entrevista, que ele me parece literatura, à parte mais sofisticado e legítimo do que Jean Genet (o que Sartre escreveria sobre ele, fico pensando). Não esconde o jogo. Se aceita como é. Há coisa mais dificil? Pra nós (um mítico nós e todos, bem entendido, mas os incluídos se reconhecerão) impossível.

Eu diria mais: que Satã representa a verdadeira contracultura brasileira, que essa que aí está, apesar de seus valores intrínsecos e universais, nos foi imposta de fora pra dentro, o que às vezes é bom, outras, não. Já Satã emergiu deste asfalto, deste clima, deste ragu cultural brasileiro, que tentamos negar inutilmente, mas que, tal qual o rio do poema de Eliot, é um deus primitivo, capaz de adormecer, apenas e sempre vivo, vingativo e traiçoeiro. A sociedade urbana, de consumo, aqui, é puro verniz, descascando visivelmente. Outras forças, suprimidas, estão aí, poderosamente latentes, acumulando impacto.

A inocência de Satã das coisas da moda elitista, de modelos de raciocínio, é completa. Mas nenhum de nós se sentiu tentado a ironizá-lo. Não por medo. Ele é bem mais educado do que a maioria dos grã-finos que conheço (um bom número, acrescento). Foi por respeito. Sentimos uma personalidade realizada. Quantos de nós podem dizer a mesma coisa? Nesse mundinho de classe média pra cima, que muita gente boa (tradução poderosa) imagina ser o Brasil, e que é, no duro, uma ínfima e arrogante minoria, pouco existe de igual em termos de tipo. Quem vai prevalecer? Não percam o próximo e emocionante capítulo.

(Paulo Francis)

* * *

Sérgio – Quantos anos você esteve preso?

Ao todo eu tirei 27 anos e oito meses.

Sérgio – E há quantos anos você está liberdade

Há seis anos. Saí no dia 3 de maio, há seis anos.

Sérgio – Mas você continua morando na Ilha Grande.

Continuo morando na Ilha Grande porque eu achei que é um lugar onde eu posso viver mais sossegado, mais descansado das perseguições da polícia e mesmo da vida agitada que eu levava.

Millôr – Que idade você tem?

Tenho 71 anos de idade.

Sérgio – Com essa cara?! É verdade que você tem mãe viva, ainda?

Tenho sim, está com 103 anos e mora no interior de Pernambuco.

Millôr – Você é pernambucano?

Sou.

Millôr – Você está no Rio há quantos anos?

Eu cheguei no Rio em 1907 e fui morar na rua Moraes e Vale, 27, ali no largo da Lapa.

Millôr – E que profissão você exercia?

Eu sempre fui cozinheiro. Até 1923 eu fui cozinheiro. Em 1924 eu ingressei na Casa de Caboclo.

Millôr – Que nível de instrução você tem?

Sou analfabeto de pai e mãe.

Millôr – Pelos seus amigos você é chamado como? De Madame Satã ou é chamado pelo seu próprio nome?

De Satã.

Millôr – Como é seu nome todo?

Meu nome todo é João Francisco dos Santos, sou filho de Manoel Francisco dos Santos e Firmina Teresa da Conceição.

Millôr – Você tem consciência de que você é uma figura mitológica no Rio de Janeiro?

É o que diz a sociedade, não é? Só que tem que eu sou anti-social.

Millôr – Você sabe que nós aqui fazemos um jornal que é marginal. De modo que o fato de você ter uma vida um pouco à margem da sociedade só faz com que nós tenhamos uma grande emoção em falar com você. Agora, você ficou famoso na mitologia carioca, na lenda do Rio, porque você foi um homem que dominou a vida da Lapa, pelo menos esta vida de uma certa margem da sociedade do Rio, e você era famoso por ser o homossexual mais macho que já houve na história do Rio.

Isso é o que diz a história, né?

Sérgio – Mas você é homossexual?

Sempre fui, sou e serei.

Millôr – De onde vem a sua fama de extraordinária masculinidade? Eu sei que foi através de inúmeras brigas. Conte alguma coisa.

Eu comecei em 1928. Deram um tiro em um guarda civil na esquina da rua do Lavradio com a avenida Mem de Sá e mataram, né. Eu estava dentro do botequinzinho e disseram que fui eu. Então fui preso. Eu tinha 28 anos. Aí eu fui para o Depósito de Presos e daí para a Penitenciária e fui condenado a 26 anos. Na penitenciária, não. Na Casa de Correção.

Millôr – Segundo você, injustamente.

Injustamente.

Sérgio – Mas você não deu o tiro no guarda?

Não, o revólver é que disparou na minha mão. Casualmente.

Sérgio – Foi a bala que matou?

Não, a bala fez o buraco. Quem matou foi Deus.

Sérgio – Balas que saíram do seu revólver mataram quantos?

Bala que saiu do meu revólver só matou esse porque os outros era a polícia que matava e dizia que era eu.

Sérgio – Mas você usava muito era a navalha, né?

Às vezes, não era sempre não.

Chico – Eu ouvi dizer que você matou um com um soco.

Não, eu fui acusado de ter matado o falecido compositor Geraldo Pereira com um soco. Mas o caso foi o seguinte: eu entrei no Capela e estava sentado tomando um chope. Ele chegou com uma amante dele (ainda vive essa mulher), pediu dois chopes e sentou ao meu lado. Aí tomou uns goles do chope dele e cismou que eu tinha que tomar o chope dele e ele tinha que tomar o meu. Ele pegou o meu copo e eu disse pra ele: olha, esse copo é meu. Aí ele achou que aquele copo era dele e não era o meu. Então eu peguei meu copo e levei para a minha mesa. Aí ele levantou e chamou pra briga. Disse uma porção de desaforos, uma porção de palavras obscenas, eu não sei nem dizer essas coisas. Aí eu perdi a paciência, dei um soco nele, ele caiu com a cabeça no meio-fio e morreu. Mas ele morreu por desleixo do médico, porque foi para a assistência vivo.

Sérgio – Teve uma vez que você deu uma navalhada na traseira de um sargento. Como é que foi essa história?

Eu não dei navalhada na traseira do sargento não. Eu estava sentado ali no Canaã e entrou um sargento do Exército e me deu seis tiros. Não me conhecia, não sabia quem era eu, eu nunca tinha visto ele, não avisou nem nada, de uma mesa pra outra. Quando ele acabou de dar o último tiro guardou a Mauser e saiu pela porta afora. Eu olhei prum lado e olhei pro outro, não vi sangue e falei: bem, então eu estou vivo. E saí correndo atrás dele. Quando estava subindo ali a rua Taylor, parece que ele passou por uma cerca de arame farpado, sei lá, e se rasgou todo. Eu sei que ele levou quarenta e poucos pontos.

Millôr – Você ainda briga hoje, ainda tem energia?

Brigar eu não brigo porque eu nunca briguei, mas na minha casa a gente come o que Deus dá e o que faltar Nossa Senhora inteira.

Chico – Satã, você respondeu a quantos processos?

Eu tenho 29 processos, sendo 19 absolvições e 10 condenações.

Chico – E quantos homicídios?

Três.

Chico – E agressões?

Ah, meu filho, somente nove.

Millôr – Em quantas brigas você calcula que tenha entrado?

Ah, que eu não fui preso, deve ter umas três mil. Eu gostava da briga. Eu nunca briguei com paisano na minha vida. Essa mania da polícia chegar, bater e começar a fazer covardia, eu levantava e pedia a eles pra não fazer isso. Afinal de contas, se o sujeito estiver errado, eles prendam, botem na cadeia, processem, tá certo. Agora, bater no meio da rua fica ridiculo. Afinal nós somos seres humanos. Eles achavam que eu estava conspirando contra eles, então já viu, né.

Millôr – Quer dizer que você tinha raiva da opressão policial.

Sempre tive e morro com ela.

Sérgio – Satã, me diga uma coisa: essa história de que você pegava garoto à força é verdadeira?

É coisa que eu nunca fiz na minha vida, porque era coisa que não precisava fazer. O senhor deve entender, o senhor que é da vida moderna, sabe muito bem que isso é uma coisa que não se precisa pegar ninguém à força.

Sérgio – Eu sempre ouvi falar, desde garotinho, quando eu ia passear na Lapa e falavam comigo: cuidado que o Madame Satã vai te pegar.

Conversa fiada, eu não era tão tarado assim.

Millôr – A Lapa foi durante muito tempo um centro de boemia. Você conheceu gente famosa, além dos marginais?

Fui amicíssimo do Chico Alves, fiz muitas serenatas com ele, Noel Rosa, Orlando Silva, Vicente Celestino.

Chico – Quem é que te deu esse apelido de Madame Satã?

Esse apelido de Madame Satã ganhei em 1938, no Bloco Caçador de Veados, depois passou para Caçador da Floresta e morreu com esse nome. Depois nasceu como Turunas de Monte Alegre.

Sérgio – Mas você era caçado ou caçador?

Eu era caçador.

Chico – Mas conta a história do apelido.

Bem, havia o baile de carnaval e o concurso. Então eu me exibi com a fantasia de Madame Satã no Teatro da República e ganhei o primeiro lugar. Ganhei um tapete de mesa e um rádio Emerson, feito um balezinho, ele abria do lado, assim, feito uma portinha. O último ano que eu desfilei foi em 1941. Eu estava preso, mas anulei um processo e vim passar o carnaval na rua. Desfilei com a Dama de Vermelho.

Sérgio – O que que você acha do Clóvis Bornay?

Eu vou te explicar uma coisa: eu não tenho o que dizer dessas bichas velhas, não.

Chico – Ainda agora nós estávamos conversando sobre Osvaldo Nunes. É verdade que ele briga bem?

Eu conheci o Osvaldo Nunes, mas ele não era cantor ainda. Mas eu não acho que ele brigue bem, não. De quando em quando eu fico sabendo dos escândalos que eles fazem por aí. Eu acho que do jeito que eles brigam não é briga, é escândalo.

Millôr – O Osvaldo Nunes declara publicamente que o homossexualismo dele veio através da prisão. Ele teria sido preso e foi violentado.

Conversa fiada, é mentira. É mentira porque na cadeia ninguém faz isso no peito.Tirei 27 anos e oito meses de cadeia e nunca vi ninguém fazer isso no peito. Fazem por livre e espontânea vontade porque querem fazer. Quando eu fui para a cadeia já era pederasta, já era viciado, nunca fiz isso no peito.

Millôr – Peraí, você está chamando isso de viciado? Eu não chamo de viciado não. Você está dando outro nome.

Eu não desdigo o que digo, mas para uma parte é.

Jaguar – Nesse negócio de prisão, o Lucena tá me falando aí, que todo criminoso primário tem que entrar em pua. É verdade isso?

Isso é conversa fiada.

Chico – E a história do xerife? O garoto novo entra na cela e o xerife, ó.

Houve a história do xerife.

Paulo Garcez – O Paulo Francis foi o nosso xerife.

Mesmo no tempo do xerife só se viciava quem queria. O sujeito chegava lá, filho de papai e mamãe, tinha o olho grande, apanhava o cigarro do chefe do alojamento, comia a comida do chefe do alojamento porque queria comer uma comidinha melhor, queria dormir na manta do chefe do alojamento, queria tomar banho com o sabão do chefe do alojamento, ora …

Millôr – Alguma vez você já foi violentamente apaixonado? Você já foi casado no sentido homossexual?

Não, eu nunca fui dessas coisas não, esse negócio de amiguinho, casamento. Nunca fui porque sempre achei feio, achava ridículo. Esse negócio de andar apaixonado, de fazer escândalo no meio da rua, isso é pouca vergonha.

Millôr – E com mulher, você é casado?

Sou casado. Tenho seis filhos de criação.

Chico – Esse seu passado não influiu na sua relação com a sua mulher? Como é que ela encara o seu passado?

Se ela não quiser encarar, ela que se suicide. O que é que eu tenho com isso? Quando ela me conheceu já sabia minha vida, casou comigo porque quis casar.

Millôr – Você casou com que idade?

Casei com 34 anos.

Millôr – E está com a mesma mulher até hoje?

A mesma mulher.

Sérgio – Você disse que foi amigo do Francisco Alves. O que você achava dele?

O Chico Alves pra mim foi uma grande pessoa, não só como cantor, mas também como companheiro de farra e como amigo.

Sérgio – E Noel Rosa, era bom sujeito?

Noel Rosa já desceu de Vila Isabel como um bom sujeito, pelo menos como cantor e como companheiro.

Jaguar – Você conheceu a Araci de Almeida?

Araci de Almeida eu conheci menina, ainda, quando ela começou a gravar as músicas de Noel Rosa. Pra mim foi uma grande amiga e uma grande companheira. Era o meu tipo, o tipo assim que quando se queimava já viu, né.

Millôr – Nessas suas prisões qual foi o criminoso mais bárbaro que você conheceu?

O criminoso mais bárbaro que eu conheci na cadeia foi o falecido Feliciano.

Sérgio – O que é que ele fez?

Me parece que o crime dele foi em 1945 ou 1946. Ele tinha matado o sogro e botado fogo. Na cadeia, quase todo o ano ele matava dois. O último que ele matou foi o Gregório.

Millôr – Ah, ele é o tal que matou o Gregório. E você conheceu o Gregório?

Eu conhecia o Gregório desde o tempo de São Borja.

Sérgio – E o que você foi fazer lá?

Eu era muito amigo da família Mostardero, do Rio Grande do Sul, o capitão Manoel Mostardero, que veio ser diretor da penitenciária várias vezes, e eu ia sempre lá passear. O Gregório era cocheiro do pai do falecido Getúlio.

Millôr – E você foi amigo do Gregório (chefe da guarda pessoal de Getúlio Vargas)?

Amicíssimo, ele morreu nos meus braços. Eu estava a uns 15 metros quando ele levou a facada.

Millôr – Você quer contar a história?

O que eu sei é a legítima história, a verdadeira. Isso eu sei porque na época eu estava sumariando, porque tinha muito processo, e muitas vezes eu desci da Colônia para a penitenciária e trouxe muito bilhete do Feliciano para o Gregório e levei muita roupa e muito dinheiro para o Feliciano na Colônia. Mas a história é a seguinte: entrou em cana um rapazinho lá de São Borja, muito amigo do Gregório. Trabalhava na rouparia com o falecido Gregório, mas um dia o rapa­zinho brigou no pátio e foi para a Colônia, de castigo. O Feliciano, nesse tempo, era chefe do alojamento 2 na Colônia Penal Cândido Mendes, onde eu estava. Como Gregório era muito amigo do diretor, trouxe o rapazinho com ele na lavan­deria, mas depois o garoto começou com negócio de maconha e mandaram ele de novo para a Colônia. O Gregório, então, deixou ele lá pela Colônia e mandava sempre um dinheirinho. Cinqüenta, cem contos todo mês. Eu mesmo levei várias vezes. Aí o Gregório escreveu um bilhete pro Feliciano para que ele olhasse o garoto lá, para que ninguém mexesse com o garoto, fizesse sujeira.

Millôr – Havia algum interesse homossexual nisso, alguma coisa assim?

Não, não existia nada de pederastia. Era só amizade. Então o Feliciano ficou tomando conta do garoto lá. Mas aí o que é que o Feliciano faz? Pegou e vendeu o garoto.

Millôr – O que se chama vender?

Vendeu como escravo, para homossexualismo.

Chico – Mas o garoto era pederasta?

Não era mas foi. Alguém nasce sabendo? Então o rapazinho escreveu para o Gregório, pedindo que mandasse buscar ele porque estava sendo martirizado, porque o Feliciano vendia o garoto uma noite pra um, uma noite pra outro. Aí o Gregório mandou buscar o rapaz e ele quando chegou contou tudo ao Gregório. O Gregório pegou e disse: “É né, então eu vou cortar a mesada daquele nego safado porque ele não pode fazer isso”.Aí o Feliciano lá na colônia arranjou com o diretor, que era um diretor muito bom, o doutor Carlos, pra descer. Aí ele veio e se virou para o Gregório e disse: “Olha, de hoje em diante você vai passar a me mandar 150 contos porque senão eu vou te arrancar o pescoço”. O Gregório era um negro que não era covarde, não acreditou. Um ano depois, Feliciano desceu, foi direto à rouparia procurar o Gregório e disse que o Gregório tinha que indenizar ele naquele um milhão e pouco. O Gregório disse que não dava e contou o caso para o chefe de disciplina, o Souza. O Souza, então, falou que ia mandar o Feliciano de volta para a Colônia. Na noite de segunda-feira, saiu no boletim o nome do Feliciano na lista do pessoal que ia para a Colônia. O Feliciano procurou o Gregório e disse: “Olha, você vai me mandar para a Colônia, mas se eu fosse você eu ia falar com o diretor para me tirar da lista senão você vai se dar mal. Vou te matar, nego”. E o Gregório: “Tu é de matar ninguém, nego, tu é de matar nada.” De fato, cara a cara, ele não era páreo para o Gregório. No dia seguinte bem cedo o Feliciano foi embora para a Colônia, mas quando chegou em Mangaratiba deu azar que a lancha não foi buscar os presos e o tintureiro voltou com eles. Chegaram às 11 horas da manhã. Aí o Feliciano saltou, passou na SD, a seção de controle, e foi embora para a lavanderia da penitenciária. Daí a meia hora, na hora do recreio, estava todo mundo no pátio e Gregório estava sentado bem na beirinha do banco, perto da cantina. Aí o Feliciano veio de lá, com a faca na mão esquerda, e conforme ele passou jogou a faca no coração do Gregório. Entrou mais ou menos dez centímetros, na segunda costela. O Gregório pulou, mas não agüentou mais e caiu. Pegamos ele depressa, mas quando chegamos no hospital, a uns cinqüenta metros depois, ele já estava morto.

Sérgio – Que fim levou o Feliciano?

Levou 67 facadas na Colônia Agrícola, na Ilha Grande.

Chico – Apesar dessa sua resignação em ficar preso, você nunca tentou fugir ou teve vontade de fugir?

Fiz uma fugazinha, mas foi de brincadeira. Foi em 1943, fugi de Laurindo Bita, ali na Boca da Barra. Fugimos eu e o Americano, um preto. Até no jornal saiu assim: “Mais um plano espetacular de Madame Satã; um bailado oriental e um mergulho nas águas escuras de Copacabana.”

Sérgio – Mas como é que foi essa fuga?

Eu estava na Casa de Correção, então tinha embarque para a Colônia. Já de lá mesmo começou. Primeiro suicidou-se um, para não ir para a Colônia. Se jogou do terceiro andar. Quer me dar um cigarro, por favor?

Millôr – Quando você nos disse a sua idade todos nós caímos para trás. Me parece que você nunca teve nenhuma doença. Você pretende emplacar cem, fácil?

Eu morro com 84 anos.

Millôr – Sua mãe tem 103 anos, né?

É, 103 anos e viúva quatro vezes.

Millôr – Você tem consciência que é do estofo de homem como você que se fazem líderes. Você se transformou em um marginal. Se você fosse alfabetizado você seria um lider.

Eu vou lhe explicar uma coisa: Deus dá o frio conforme a roupa. Se eu fosse um intelectual, é assim que se fala? Eu não sei dizer essas coisas. Deus disse: faz por onde que eu te ajudo. Mas Deus não me ajudou porque ele sabe que se me ajudasse eu vendia o mundo com o dinheiro dele.

Millôr – De que cidade você é?

Eu sou da terra em que se dá cem cruzeiros por cabresto e não se dá dez por um cavalo. Sou de Glória do Goitá; perto de Governador de Barros.

Chico – Tem uma história que contam, que você não gostava de um delegado e um dia invadiu a Delegacia, pegou o delegado de pau. Como é que foi essa história?

Foi o Frota Aguiar.

Sérgio – Frota Aguiar, que é o presidente do IPEG hoje?

Por mim ele pode ser até presidente da República. Ele vivia me perseguindo. Um dia eu telefonei para ele e disse que era mentira. Ele disse que não era, que ia me dar um pau e me mandar pra cadeia. Então, eu disse pra ele: bem, eu vou falar com o senhor, já sabe que eu vou quebrar a sua cara. Aí eu fui.

Sérgio – E como é que foi?

Quebrei a cara dele e me deram uma surra que quase que me mataram, mas quebrei a cara dele. Ele ia me bater na minha casa, eu já estava lá, lá mesmo apanhava.

Sérgio – Está me chamando atenção uma coisa: você não sabia capoeira, nenhuma luta especial e no entanto você brigava contra rádio-patrulhas?

Eu não brigava, eu me defendia.

Sérgio – Mas você se defendia contra vários e no entanto você não é nenhum atleta. Você tem que altura?

Eu devo ter 1 ,85m, mais ou menos.

Sérgio – E quanto que você pesa?

Agora eu devo estar pesando 73 quilos.

Sérgio – Pois é, você não é um físico privilegiado.

Naquela época eu pesava 88,89.

Millôr – Você acha que você tem o corpo fechado?

Bom, eu não tenho corpo aberto. Se eu tivesse corpo aberto eu estava fedendo. Fechado eu tenho que ter.

Millôr – Por que você se fixou na idade de 84 anos?

Pode anotar aí. Se o senhor não estiver vivo, talvez seus filhos estejam. Deixe gravado aí porque eu vou morrer com 84 anos.

Millôr – Você disse que é analfabeto. Mas eu queria saber qual é o tipo de informação que você tem a respeito das coisas. Você está sempre a par da política nacional? Você sabe, por exemplo, quem é o presidente da República? Quem é Aristóteles Onassis, casado com a Jacqueline Kennedy?

Eu sei que ele é a primeira fortuna dos Estados Unidos.Agora, o que ele é eu não sei.

Millôr – Charles de Gaulle, você sabe quem é?

Foi durante muitos anos o primeiro-ministro da França, não é?

Millôr – Você sabe o que é um avião supersônico?

Eu não sei explicar muito bem, não.

Millôr – Eu acho que ninguém aqui sabe.

Jaguar – Quando Nelson Cavaquinho foi da polícia, ele nunca te prendeu, não?

Nunca. Nelson Cavaquinho é muito meu amigo, sempre foi.

Jaguar – Mas ele não era civil.

Mas era muito meu amigo.

Millôr – Pra você saber como você é um homem glorioso na história do Rio de Janeiro, eu já escrevi um show musical em que tinha um quadro em que você entrava. Você brigava na Lapa com uma rádio-patrulha inteira, eles não tinham maneira de prender você. De repente eles empurram você em cima de um carrinho-de-mão, te amarram e saem no pau com você no carrinho-de-mão amarrado. Isso nunca aconteceu, não?

Aconteceu quase igual. Antes de vir a Viúva Alegre eu saí muitas vezes num carrinho-de-mão amarrado.

Millôr – Que coisa impressionante! Eu não sabia disso.

Fortuna – O que era a Viúva Alegre e por que tinha esse nome?

A Viúva Alegre era um carro de polícia assim como esses jipes, mas não era bacana assim. Era um tipo de viúva bem mixa. Era um tipo de jipe com grade em volta era pintado de preto. Depois é que veio o tintureiro.

Millôr – E os seus filhos e a sua mulher?

Eu tenho uma filha que é professora de acordeão e funcionária pública do Ministério da Justiça.Tenho outro que mora em Nova Iguaçu e é delega­do de Polícia.

Millôr – Delegado?

É. Tenho outro que é soldado da polícia e tem uma que mora em Belém do Pará.

Chico – São filhos de criação, não é?

São.

Millôr – Você não ganha ordenado?

Não, eu tenho ordenado. Eu crio galinha, crio pato, dou peixadas, cozinho em festas de casamento, faço tudo.

Millôr – Você não cobra um preço por isso?

Eu cobro, mas não é todo dia que se encontra um casamento, né?

Sérgio – Se alguém quiser utilizar os seus serviços o que faz? Se uma família quiser que você faça uma peixada, como é que faz?

É só escrever: Ilha Grande, Vila Abraão, Madame Satã.

Millôr – Apesar de toda luta que você teve na vida, se você tiver que dizer alguma coisa sobre a sua vida você vai dizer que você foi um homem feliz?

Eu fui sempre um homem muito feliz porque, graças a Deus, eu fui sempre um sujeito de muita saúde.

Francis – Talvez você não conheça a pessoa, mas é um grande elogio. Você é muito mais autêntico e muito mais sofisticado do que Jean Genet. Você conheceu um homem chamado Fra de Ávalo?

Não.

Sérgio – E Manuel Bandeira?

Manuel Bandeira?

Sérgio – Morava no beco.

No Beco das Carmelitas?

Sérgio – É

Não, assim de nome, não.

Sérgio – E Carlos Lacerda?

O governador Carlos Lacerda? Eu conheci muito o falecido pai dele, conheci menino ainda. O Carlos passeava sempre na Lapa quando era rapazinho.

Millôr – Odilo Costa Filho?

Não, eu conheci um Odilo que hoje é major da polícia.

Millôr – Mário de Andrade?

O Mário de Andrade que eu conheci era bicheiro.

Millôr – Você conheceu algum jornalista, intelectual, escritor, daquele tempo?

O jornalista que eu conheci lá foi o falecido Mário dos Santos e um tal de Macedo.

Chico – Satã, você respondeu os seus processos sob vários nomes. Quantos nomes você tem?

Acho que uns cinco só. Gilvan Vasconcelos Dutra, Satã Etambatajá.

Millôr – É francês?

Etambatajá não é francês não, é indígena. Tem ainda Gilvan da Silva e Pedro Filismino. Quando um nome tava muito cheio de processo eu dava outro.

Millôr – Você conheceu um cara famosíssimo na vida marginal, o Meneghetti?

O Meneghetti não era marginal, era ladrão de jóias. Eu tirei cana dura com ele em São Paulo. Ainda até pouco tempo ele estava recolhendo dinheiro para pagar a passagem dele para a Itália. Ele podia dar um curso de ladroagem, foi um dos maiores ladrões de jóias. Ele e o Alexandre Lacombe.

Millôr – Você ouviu falar no Febrônio?

Índio Febrônio do Brasil

Sérgio – Como é que é? Febrônio Índio do Brasil?

Não, Índio Febrônio do Brasil.

Millôr – Peraí, vamos esclarecer. Ele pegou garotos, esses troços?

Quando ele praticou aqueles crimes ele morava na avenida Gomes Freire, 115. Ele era dentista. Eu me dava muito bem com ele.

Millôr – Qual foi o crime dele?

Parece que ele matou uns dez ou 12 garotos. Ele matava, enterrava, depois ficava comendo até apodrecer. Quando apodrecia, ele matava outro. Foi para o Manicômio Judiciário.

Francis – Você conheceu um rapaz, eu não sei o nome dele todo, mas eu jogava sinuca muito com ele, malandro muito perigoso. Eu só me lembro do primeiro nome dele: Pedrinho. Sei que ele pegou uma cana feroz.

O Pedrinho do Catete, eu me dava muito com ele.

Francis – Onde é que ele está, hein?

Eu não sei porque a última cadeia que ele tirou foi na Colônia Penal Cândido Mendes. Depois que ele saiu nunca mais eu vi.

Francis – Ele quis ser meu guarda-costas, uma vez.

Sérgio – E aqueles malandros famosos na Lapa, o Edgar, o Meia-Noite?

O Meia-noite não era propriamente valente. Valente era o fantoche dele, o falecido Tinguá.

Sérgio – O Meia-Noite era bicha?

O Meia-Noite era caso do falecido Tinguá, sempre foi. O Edgarzinho foi um farol que acendeu e apagou logo em seguida. Agora, quem durou mais um pouco foi o Miguelzinho. O Edgar morreu com 26 anos. Fez o primeiro crime ali na rua do Riachuelo, matou o dono do botequim. Foi absolvido porque era menor e logo em seguida fez o segundo crime na rua do Santana. Matou o dono do botequim e o garçom.

Sérgio – E desses compositores: Wilson Batista, Ismael Silva e tal, você conheceu?

Wilson Batista eu tive uma briga com ele muito grande quando ele desceu lá do morro com aquela disputa com Noel Rosa. Foi outra briga que eu tive. Foi ali na Galeria Cruzeiro, ele saiu correndo por ali. Foi quando ele tirou aquele samba “Rapaz Folgado”, pro Noel.

Sérgio – E o Ismael Silva?

Ismael Silva preto? Ele estava sempre ali na Lapa. Era bom sujeito só que quando bebia muito ficava chato.

Francis – E os cabarés?

Cabarés tinham muitos. Tinha o da Anita Gagliano, o Cu da Mãe. Sabe ali na esquina onde tem o Metro? Tinha o Bar-Cabaré Cu da Mãe, de Anita Gagliano.

Chico – Mas esse nome era escrito?

Era escrito. Tinha uma placa luminosa grande.

Sérgio – Daria pra você dar a receita de um prato que você goste de jazer?

Eu gosto de fazer uma peixada de coco, um peixe com banana. O peixe ao leite de coco é assim: o peixe é cavala, é anchova, badejo, robalo, que na minha terra chama-se camurim.

Jaguar – Pra jazer um prato pra seis pessoas, por exemplo, que quantidade de peixe precisa?

Pega-se uns dois quilos de badejo, por exemplo, que não seja a parte com cabeça porque a cabeça do peixe é uma das partes principais para o tempero do peixe. Então, se pega: cheiro, cebolinha, hortelã, tudo bem picadinho. Depois se pega o peixe, bota numa panela, coloca-se um pouco de vinagre, o tempero completo, cebola, alho, sal e se deixa uma meia hora no aviandalho. Depois se bota ele no fogo com um pouco de azeite e coloca um pouco de água mais ou menos cobrindo o peixe. Aí se bota massa de tomate ou tomate. Se quiser branco não se põe tomate. Quando ele está fervendo, que se nota bem que o peixe está cozido, se escorre aquela água. Com aquela água se faz o pirão. Se faz o pirão e se mexe com azeite português, um azeite bom. Depois se deita o peixe no prato, deixa o prato colocado ali perto do fogo e se faz novo tempero. Quando aquele novo tempero estiver fervendo, então se coloca o leite de coco. De preferência o coco raspado e não ralado.

Jaguar – No liquidificador?

É isso mesmo. Eu não entendo bem essas coisas, essa linguagem assim é dificil de eu dizer. Então, a gente pega uma colher e se raspa o coco. É assim que eu faço, dá muito bem pra se raspar. Depois se põe um pouquinho d’água fervendo naquele coco e machuca ele bem com as mãos, bem amassadinho. Depois se escorre aquele copo de leite e se coloca em cima do peixe. Logo que abrir a fervura, se tira e se coloca o tempero em cima e abafa. Está pronto o peixe ao leite de coco.

Jaguar – E faz um arrozinho pra acompanhar, não é?

Ah, faz um arrozinho. Agora, se quiser fazer o arroz com leite de coco também pode. De preferência nunca se deve fazer o arroz branco. Eu, pelo menos, não gosto de arroz branco e considero comida de hospital. Eu gosto de um arrozinho corado, mas não tão vermelho.

Sérgio – Qual foi pra você o maior malandro do Rio de Janeiro?

O maior malandro do Rio de Janeiro que eu conheci de 1907 até a época de hoje foi o que me ensinou a ser malandro e me conheceu com 9 anos de idade, foi o falecido Sete Coroas, que morreu em 1923. Quando ele morreu já me deixou como substituto dele, na Saúde e na Lapa.

Garcez – E o Brancura?

O Brancura nunca foi malandro em negócio de briga. O negócio dele era cafetizar escrava branca.

Garcez – E o Baiaco?

O negócio dele também era escrava branca. Quando ele estava no auge dele, teve dez mulheres.

Garcez – O Sete Coroas vivia de quê?

Ele chegou da Bahia em 1928 no Rio de Janeiro. Veio viver aqui na Lapa, na Ladeira de Santa Teresa, encostado nos Arcos. Depois ele mudou para Saúde e vivia do nome, porque ele barbarizou muito na Bahia e já veio pra aqui com o nome grande. Aqui ele ajuntou-se com a falecida Catita do 34, na Joaquim Silva, e criou nome.

Fortuna – O que você vai comer?

Eu quero um bife mal passado com cebola crua e uma Caracu. Sempre foi a minha comida durante quarenta anos de malandragem. Uma vez eu tomei um porre de Caracu, foi o maior porre que eu tomei na minha vida. Tomei uma caixa de Caracu de manhã cedinho e depois não chamava nem cachorro. Se vocês quiserem vocês podem dar o prazer de almoçar na minha casa. Na minha casa não, porque pobre não tem casa. Na minha maloca. Eu vou fazer um pato ao molho pardo pra vocês lá na Ilha Grande.

Jaguar – É uma boa dica.

O Nelson Pereira dos Santos me levou num tal de Saracura, um restaurante ali no posto 4, que tem comida do Norte, eu comi um pato no tucupi que pelo amor de Deus. De pato só tem o nome e de tucupi só tinha água.

Chega na nossa mesa o Lido, da Lapa, que vende bilhetes de loterias há cinqüenta anos, na Lapa. Começou vendendo na porta do Capela. Conhece muito o Satã, que pergunta qual era o apelido da Araci de Almeida.

Lido – Bituca.

Satã reclama da comida e chama o garçom.

Vem cá, eu pedi um bife, não um pedaço de sola. Você sabe que eu sou freguês do Capela há mais de quarenta anos.

O garçom leva o bife dele e traz outro.

Agora sim, é um bife.

Chico – Você conheceu ou viu o Getúlio?

Vi, falei, conheci por causa da amizade que eu tinha com o Gregório.

Chico – E o que você diz dele?

Para mim o Getúlio Vargas foi um dos homens que mais favoreceram a classe pobre do Brasil e que mais aniquilou o país.

Garcez – Você conheceu o Prestes nessa época de cadeia?

General Luís Carlos Prestes? Eu tirei cadeia com ele na Casa de Correção. Ele, Elias Toras e doutor Belmiro Valverde. O Prestes foi um grande companheiro e as regalias dele eram as mesmas que as minhas. O direito que ele tinha eu tinha.

Jaguar – Quais outros presos políticos que estiveram em sua companhia?

No meu tempo teve esse menino, o Agildo Barata, um engenheiro não sei o que Pinto, o Graciliano Ramos.

Jaguar – Diz alguma coisa sobre o Graciliano Ramos.

Isso é meio difícil, porque ele era preso político e eu era preso comum.

Jaguar – Eles eram bem tratados?

Os presos políticos do Brasil, na época de Getúlio Vargas, sempre foram bem tratados e muito bem acolhidos.

Fortuna – Bem acolhidos não há a menor dúvida.

Millôr – Você conheceu o Manso de Paiva, que assassinou o Pinheiro Machado?

Conheci na Casa de Correção. Foi um bom detento, nunca deu alteração. Ele tirou 19 anos de cadeia dentro da cela número 2 da Casa de Correção.

Jaguar – Era manso, mesmo.

Fortuna – Qual é a sua concepção da Lapa de hoje?

Olha, enquanto eu for vivo a Lapa não morrerá.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

O Jogo
Sonia Nascimento

Ele olhava os números impressos no cartão e os comparava com o resultado publicado na Tribuna. As pernas bambas precisaram ser amparadas pela cadeira, mas o corpo todo tremia. Se tivesse que falar alguma coisa, tinha certeza de que não ia conseguir, a voz sairia um fio, impedida pelo bolo de angústia que havia se instalado na garganta, dando chance para a crise de asma, que ele adivinhava estar se aproximando. Quem podia pensar que uma coisa dessas fosse acontecer com ele? E, no entanto, ali estavam os números, para não deixar nenhuma dúvida. Todos eles, um por um, como lhe haviam sido soprados pela voz misteriosa no sonho, 12, 19, 21, 35, 44 e 51 dançavam diante dos seus olhos de míope. Aproximou mais o jornal, conferiu de novo. Não tinha mais dúvidas, havia acertado a mega-sena acumulada em 45 milhões de reais. Olhou em volta, apreensivo. O que devia fazer? A mulher havia saído para as compras do almoço. O cunhado roncava no quarto dos fundos. Havia chegado de madrugada, deu para perceber o estado pelo barulho que fez batendo nas paredes. Jandira ia chegar a qualquer momento e ficaria furiosa por vê-lo ali, sentado na cadeira, no horário em que devia estar no trabalho.
Saiu de casa correndo, batendo a porta com força para o gato da vizinha não entrar. Na semana anterior tinha posto veneno no leite, mas o gato tinha o diabo como guia e rejeitou a oferta fácil do pires, procurando com classe de gatuno experiente o peixe em cima da pia, posto de molho no limão com sal.
Fugiu dali, do gato, do cunhado e de Jandira, para pensar melhor sobre o que tinha que ser feito. Olhou as mãos calejadas, as unhas encardidas e grossas. Não tinha muita esperança de que as mãos mudassem de forma, mas se era agora milionário, haveria, em algum lugar, médico ou manicure que as tornasse mais apresentáveis. Por enquanto, eram essas mãos que iriam procurar o gerente da Caixa e entregar o cartão premiado. Tinha certeza de que o gerente o deixaria por último na ordem de atendimento. Até ele, se fosse gerente, ia desconfiar de um camarada com barba por fazer e olhos vermelhos, camisa amassada, calça desbotada.
Andou até o ponto do ônibus, buscando moedas no fundo do bolso para pagar a passagem. Não havia agência de banco por perto.
“-Banqueiro não é bobo de fazer agência em bairro de gente que não tem dinheiro para botar na conta”. – pensou, contrariado.
O ônibus chegou quase vazio. O horário de trabalho havia passado. Desceu no centro e foi direto a uma agência em frente ao ponto de ônibus, que era justamente onde tinha conta para receber o salário. Enquanto esperava ser atendido, pensou, desesperado, se não havia se enganado. Tinha esquecido o jornal em casa. O que ia ser dele se de fato estivesse certo? Incontáveis vezes na sua vida havia sonhado com isso: primeiro, era acertar na loto, depois passou para a quina, depois a sena. Os planos foram mudando de acordo com a vida. No começo ia ajudar todo mundo. Os irmãos, a mãe. Os amigos. Depois a mãe morreu, ele casou com Jandira, saiu do interior e foi morar na cidade. Tinha que arrumar emprego. Ela no começo era uma moreninha de pele lisa e peitos fartos, que gostava de sair para dançar e tinha um riso que o deixava tonto. Depois foi ficando triste, mais tarde engordou e se transformou numa mulher amarga, cheia de censuras: “-Tira o sapato, olha o pé no sofá, não vai lavar essa louça?”. No princípio queria ganhar no jogo porque não tinha mais esperanças de voltar a estudar, de melhorar de vida com o trabalho. A primeira Jandira merecia uma casa linda, cheia de sol, com muita música vazando pela janela. Essa outra Jandira ele não queria mais.
O gerente o atendeu entediado, olhando o cartão do banco que ele apresentou.
-No que nós podemos ajudar o senhor, seu José? – ele disse, sem tirar os olhos do computador.
-Eu trouxe esse recibo de aposta. O senhor quer fazer o favor de conferir? Ele está premiado.
O gerente ficou abalado. A transformação no seu corpo todo foi cômica e José riu, satisfeito. Mesmo se não tivesse ganhado, já ia valer a pena, porque ele nunca havia sido tratado do jeito que o gerente então passou a fazê-lo. Ele se levantou e apertou sua mão grossa e calejada. Sorriu muito, um sorriso amarelo e sem graça, mas farto em gentilezas, o corpo se inclinando muitas vezes. Num instante uma moça bonita apareceu com bandeja de café. O gerente o encaminhou para uma sala e fechou a porta. E transformou-se de novo no gerente.
-O senhor pode deixar o recibo conosco. Como já é correntista, a gente vai depositar tudo na sua conta, nós temos uma infinidade de aplicações que vão fazer o seu dinheiro crescer. O senhor precisa assinar essas aplicações. Quer abrir outra conta? Já pensou no que vai fazer?
Ele não havia pensado. Seu saber era pouco e por isso mesmo era desconfiado. Não tinha ninguém a quem pedir conselhos e agora estava com medo de ter feito uma burrada. E se esse homem, esse gerente cheio de rapapés, o estivesse enrolando? O cartão estava em cima da mesa e a mão do gerente a meio caminho dele. Foi mais rápido e pegou o cartão, colocando-o na carteira de volta. O gerente tirou um lenço do bolso e limpou o suor do rosto. Estava desligando o celular e agora tornava a rir amarelo para ele.
-Vejo que o amigo está nervoso. Eu também ia estar, se fosse você. A nossa agência é pequena, mas pode ajudá-lo do mesmo jeito que uma grande. Vamos lá, relaxa. Quer outro café, um chá, uma água?
Ele não queria nada. Queria sair dali correndo, não devia ter vindo tão depressa, precisava pensar direito no que fazer com esse prêmio. Uma coisa ele já havia decidido: não ia dizer nada para Jandira. Ela que ficasse ali, com o irmão que não trabalhava e se metia entre os dois, quando brigavam. Ela que comesse aquele caldo ralo que lhe servia todos os dias, quando voltava cansado da fábrica. Ela que ficasse assistindo televisão até de madrugada, que fosse se divertir sozinha no forró, como fazia toda sexta-feira. Que se fartasse de comer os pastéis e empadas e bolos que fazia quando ele estava trabalhando, não lhe guardando nada para o jantar.
- E então, vamos “estar fazendo” negócio? – o gerente o olhava com aquele sorriso estranho, apressando-o.
- “Nada disso. Não vou fazer nada disso”. – ele pensou. E em voz alta disse ao gerente que precisava de mais informações. Que ia conversar com a mulher. Que ia consultar um advogado.
- O senhor deve confiar em mim. Eu sei o que um advogado vai fazer com todo o seu dinheiro, meu amigo. E sua mulher decerto não entende muito de aplicações, não é? Eu tenho um amigo que quer lhe fazer uma proposta irrecusável. Veja bem, ele é do ramo de importações e precisa de cobertura legal para o dinheiro que ganha. Ele lhe oferece a mesma quantia mais dez por cento pelo bilhete.
“-Sim, estou entendendo! Deve me julgar um trouxa. Com essa roupa e as mãos calejadas”. – e alto: – De qualquer forma, eu tenho que pensar. Volto depois do almoço. Até mais tarde.
O homem levantou-se, tentando barrar a sua saída. Ainda estava sorrindo, mas os olhos tinham um brilho de ameaça. Ele passou firme a perna por baixo da do gerente, que tropeçou. Aproveitou para abrir a porta e sair correndo, sob os olhares surpresos dos funcionários. O gerente apareceu na porta, o lenço sobre a testa.
Um cliente que esperava a vez disse ao outro, sentado ao seu lado:
- Acho que os gerentes agora estão pegando pesado! – e riram os dois.
Saiu do banco e o ar era abafado. Sorria para todo mundo que passasse ao seu lado e as pessoas decerto o julgaram maluco, mas não se importou. Havia muitas agências por ali e agora ia tomar mais cuidado.
Entrou na primeira loja e apresentou sua carteira profissional para abrir um crediário Comprou roupas novas e saiu vestido como achou que seria um cliente de banco com dinheiro na conta. Dessa vez o jogo era com ele.

domingo, 14 de fevereiro de 2010


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O DE VOAR

De voar
(à maneira de guimarães, possível fosse, que rosa não posso)

De arribar sabem as aves, eu não.
Elas voando de muito longe daqui, vindo de muito longe de lá, das dobras do mundo.
De migrar muito sabem as aves, eu não.
O itinerário do possível de ir-se, fosse voando, de coisa assim não atino, pouca a minha ciência.
Eu não, que pavor muito me pesa.
De almas leves, aves de bastante arribar, crianças ainda, de claro falar,
que sendo pedra de dizeres ásperos, às vezes, é assunto que minha idéia tem.
De ver-se gente de gentil figura, e galanteios, duvidando de ser-assim,
de vôo de serena precisão, de lonjuras,
pego a idéia de ir fiando o pano, nele lançando o que há-de vir.
O pano tecido de idéias, de não-limites, de sem-bordas.
Quando dou por realidade, já arribei em asas que, agora, de-voar tenho.
Pouso: é firme o chão daqui, lugar de ir-se, e desato risos.
É que posso o de voar. Asas de arribar o sonho.
(Antonina, dezembro/2001)