sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Olhos de Cabra

Acordo com a sensação de que o sonho está instalado ao meu redor, persistindo, permeando o quarto, as vozes contornando a cama. O cheiro de café e um som de risos abafados vindos de algum lugar mais distante me dão a certeza de que é dia, mas meu corpo recusa o comando de qualquer movimento. Estranho que o coração não galope com esse jeito inesperado de acordar. Os olhos estão semi-abertos e aos poucos a cena ao redor começa a fazer sentido, a certeza chegando devagar, embora eu me negue a acreditar.
A penumbra está se dispersando. Percebo que estava enganada quanto ao lugar onde me encontro: não é meu quarto, tampouco minha cama o local onde meu corpo jaz, depositado numa caixa suspensa a um metro do chão.
Num canto desse aposento estranho, possivelmente uma capela de velório, entre parentes e amigos, estão Francisco e Regina. Ela segura a mão dele. Um gesto que pode ser interpretado como de apoio e encorajamento, muito apropriado para a ocasião.
Minha tia Marieta chora, enquanto tenta enfiar entre meus dedos duros um rosário de contas de vidro que eu conheço desde criança. Ganhei de presente quando fiz a primeira comunhão. Nas missas de domingo, costumava rodar as bolinhas de cristal entre os dedos, fingindo rezar, o pensamento na sessão de cinema onde ia ver Francisco, quem sabe lhe conceder um beijo ou permitir uma carícia mais ousada. Tia Marieta aprovava meu olhar alheado. Jurava para minha mãe que eu tinha vocação para freira, como ela.
O fio de pensamento é interrompido bruscamente. Meu corpo todo se move por dentro como um vulcão. Posso sentir as vidas que começam a embrionar-se, brotando como folhas verdes dentro do meu coração.
Sinto medo. O quevai acontecer agora?
Uma voz sufocada e confusa me traz para o aposento:
- Tem certeza que ela se matou?
Minha filha Luiza chora convulsivamente, com as mãos sobre meu corpo. Compreendo que esta será a versão oficial da minha morte. Vai ser um escândalo na cidade. Se o padre Inácio ainda fosse vivo meu corpo não teria paz em campo santo. As beatas não rezarão no velório, mas o padre novo não vai criar obstáculos para o enterro no cemitério, na cripta da família.
Se tudo é um sonho, esta é a hora certa para acordar.
Grito. Sons enlouquecidos, abafados, mas nem eu sou capaz de ouvi-los. Tento abrir mais os olhos, depois fechá-los, mas nada acontece. A fumaça das velas está me sufocando. Ninguém percebe todo esse esforço. Luiza ainda chora, mas agora já é um pranto manso, consolada pelo pai.
Vejo os movimentos dos dedos de Regina, apertando a mão de Francisco, acariciando seu rosto. Vestida de preto, ela tem um ar de autoridade maior do que ostentou em toda a sua vida. Seus óculos escuros escondem, de forma apropriada, os olhos oblíquos.
Eu, pelo menos, sei que seus olhos sorriem. Tudo corre de acordo com o que se espera de um velório. Todos vestem roupas apropriadas, o cafezinho servido pelas nossas tias vem acompanhado de bolinhos e biscoitos. Ninguém chora fora do tom. Enfim, tudo dentro dos padrões de Regina.
Ninguém vai desconfiar que ela é responsável pela doença prolongada que me levou.Deve ter levado anos ministrando algum veneno secreto. Doses pequenas, para não levantar suspeitas. Uma ou outra mais forte no final. Veneno cumulativo, destruindo aos poucos meus projetos, transformando minha vida, me tirando a dignidade.
Desde criança ela queria tudo que era meu. Minhas bonecas, minhas amigas, meu namorado. Não tinha mãe, mas havia conquistado a minha, que, por sua causa, casou-se com meu pai. Era mais bonita, mais inteligente, mas isso não a consolava.
Seu ódio era uma coisa natural para mim. Cresci acostumada a esse olhar de cabra que me seguia. Nunca disse como me sentia, nem a ela, nem a ninguém. Ela era perfeita. Cuidou da minha mãe, do nosso pai, da avó. Recebia as tias que apareciam uma vez por semana em casa, para uma disfarçada inspeção nos móveis, quadros e tapetes decadentes, depois que mamãe morreu. Criou minha filha, foi a enfermeira perfeita e nunca deixou que Francisco se preocupasse com a direção da casa, poupando-o das queixas e dos problemas domésticos.
Só no fim compreendi. Ontem, antes de dormir, ela entrou no quarto e havia uma luz de felicidade no seu rosto. Parecia uma menina esperando pelo primeiro baile. Eu estava fraca e enjoada, recusei a xícara de chá que ela me ofereceu. O xale de minha mãe estava sobre os seus ombros. Era meu, uma herança da avó espanhola. Ela sabia que eu nunca ia permitir que o usasse. O xale era uma disputa antiga entre nós e ficou para mim na divisão dos objetos da minha mãe, por sua vontade, manifestada diante das tias, o que legitimou a posse.
Ela me desafiou com o olhar. Enrolou o xale no pescoço branco, retirou os óculos e soltou os cabelos. A injeção da noite ficou esquecida na bandeja. Eu quis dizer alguma coisa, mas desisti. Estava sem forças e achei que não valia a pena discutir sobre coisas aborrecidas. O xale ainda seria meu no dia seguinte. Deixei que ela me convencesse a tomar o chá e nem vi quando saiu do quarto. Devo ter adormecido em seguida.
Agora estou aqui, num pesadelo que nunca termina. Ainda continuo tentando falar, mas os músculos enrijeceram e a acusação se perde na confusão das lembranças.
Regina me olha e, como se quisesse certificar-se, chega perto de meu rosto, sem importar-se com o hálito da morte. Seus olhos por trás dos óculos escuros estão brilhando, impregnados ainda daquela felicidade juvenil com que se apresentou no meu quarto ontem.
Arruma as flores e ajeita o terço. O choro na sala aumentou e já compreendi que vão cobrir o caixão. Não consigo segurar essa mão que me cerra com firmeza a fresta dos olhos e baixa a tampa escura, para que o silêncio se instale para sempre dentro do ataúde, enquanto dentro de mim brotam raízes.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Um Menino

AO GUSTAVO

Você já reparou que atrás dos olhos as cores são profundas, brilhantes, cortando um fundo bem escuro? Eu sei que é bem atrás dos olhos, porque já reparei que quando eles estão fechados se voltam para dentro. Como sou esperto, descobri isso tentando abrir os olhos de minha prima Dulce, quando ela estava com eles bem apertados para não ver minhas caretas tenebrosas. Dei o nome de tenebrosas às minhas caretas desde que me tornei o campeão da rua em caretas bem assustadoras, numa disputa com Maurício. Minha mãe e as mulheres em geral abominam as caretas.
Pessoas parecem passear sua condição de adultas diante de mim, e de vez em quando me alisam os cabelos e dizem: "- Que gracinha! qual é o seu nome?” - Naturalmente não digo. Meu pai disse que já foi criança, há algum tempo, e que todas as pessoas já foram algum dia. Minha avó Carmela conta estórias sobre Napoleão e Gulliver, e acho impossível que Napoleão tenha sido criança, embora Gulliver pareça mais provável. Tenho um amigo que parece ter nascido para ser adulto. Ele me disse que toma banho todos os dias, quer ser engenheiro não sei o que espacial e brinca com umas coisas cheias de pilhas e luzes. Eu não pretendo ser absolutamente nada. Se houvesse uma profissão de andarilho, então eu ia tentar.
Conheci um andarilho que vinha do Chile e ia para Aparecida do Norte, que se chamava Pedinte ou coisa assim. Você não imagina que maravilha era a vida dele: não tomava banho fazia muito tempo e também não tinha intenção de tomar; não fazia a barba, não ia cedo pro trabalho (como meu pai vai), comia o que queria, pois na minha rua todo mundo deu comida pra ele.Tinha uma bicicleta munida de coisas maravilhosas, como bandeirinhas de times de futebol, espelhinhos, retratos, uma mala cheia de objetos coloridos e jogos de botão.
Houve um tempo em que eu quis ser detetive. Isso foi quando aconteceu o tal assassinato no sobrado em frente a minha casa. Minha mãe disse que não se deve chamar assassinato a um acidente. Diz que dona Aída caiu da escada e quebrou o pescoço. Ela estava sozinha em casa e tentou descer, coisa que as pernas dela, pelo jeito, não concordaram, já que dona Aída era mulher muito velha. Muitas vezes eu tentei adivinhar a idade dela e cheguei a perguntar, mas levei uns cascudos da minha mãe. Nunca consegui entender esse mistério da idade das mulheres. Por isso classifico-as de muito novas, mais ou menos e definitivamente velhas. De todas, gosto mais das últimas. As muito novas são como minha prima Dulce, chatas e choronas. Algumas vezes levo a culpa das coisas que ela faz, como esquecer o patinete no quintal ou comer o resto da sobremesa da geladeira. As mais ou menos são as piores, cheias de pose. Dão uma importância muito grande para bobagens, como andar com uma bolsa cheia de coisas inúteis. Nunca encontrei um canivete na bolsa de minha mãe. Ela está sempre envolta numa nuvem azul de fumaça, estirada no sofá como uma gata e coberta de revistas até a cabeça. Gosto de recortar essas revistas e então ela fica muito zangada. As muito velhas são engraçadas, sempre cheias de balas e contam estórias, como minhas avós e dona Aída.
Minha mãe disse algo como ela ter vivido "pra valer" quando era nova. Perguntei como era isso e ela me mandou assistir desenho na televisão, me retirando da cozinha e da conversa. Dona Aída não tinha filhos e eu não entendo como uma mulher tão velha pode não ter filhos (minhas avós tiveram uma porção, que eu vejo de vez em quando, no natal e no carnaval). Dona Aída tinha um parente, seu Inácio, um homem também muito velho e muito gordo. Esse seu Inácio vinha de vez em quando visitá-la e trazia caixas de bombom de cereja. Naturalmente eu estava sempre por perto. Posso farejar um chocolate a quilômetros de distância, só pelo tamanho e embalagem da caixa ou volume dos bolsos. Até desenvolvi uma técnica de chegar como quem não quer nada e olhar com surpresa e felicidade para o chocolate em questão. Quando não dá certo (alguns adultos fingem não me ver), eu abro a boca e arregalo os olhos. Se a gente não pisca, eles se enchem de lágrimas. O adulto então pensa que eu estou chorando e me dá um pedaço ou até o chocolate inteiro. Com minha mãe não dá certo. Ela sabe que eu só choro quando tomo injeção ou mediante palmadas no traseiro, quando, por motivos que desconheço, ela se põe a gritar com as mãos na cabeça e corre até me alcançar. É uma luta correr mais que ela. Acho que todas as mães poderiam apostar corrida, como às vezes aparece na televisão, depois do natal. A mãe do Carlinhos corre mais que a minha, porque ela treina com mais uns cinco filhos.
Seu Inácio era mesmo um tipo suspeito. No dia do acidente/assassinato, eu o vi com uma lata de graxa na mão, no alto da escada. E levou um susto quando me viu, até me deu uma nota de cinco reais para comprar sorvete. É claro que me queria fora da cena do crime. Para mim, seu Inácio engraxou a escada para dona Aída cair e ganhar o seguro de vida! Ou então, havia um tesouro enterrado no fundo do quintal, do tempo dos piratas franceses e seu Inácio descobriu o mapa. O certo é que dona Aída caiu e quebrou o seu velho pescoço. E que seu Inácio vendeu a casa, não sem antes deixar o quintal todo esburacado. Nunca mais o vimos. E também ninguém acreditou em mim, mesmo depois de eu ter contado tudo que sabia, e meu pai me proibiu de ver os filmes do Monk na televisão. Do que eu pude deduzir, as crianças não podem ser detetives, porque os adultos não acreditam nelas, e quando crescem também não vale a pena. Segundo meu pai, tudo o que o Monk faz é só no filme.
Outra coisa que eu quero ser é solteiro. Não posso imaginar porque alguém cresce e faz coisas como casar. Meu pai é um homem casado. Nunca havia me dado conta disso, até que um dia, numa dessas visitas de natal, minha avó Inocência deixou escapar esta frase: "- foi no tempo que Gilberto casou." - Gilberto é meu pai. Foi como se o mundo caísse na minha cabeça! Meu próprio pai, que me parecia tão esperto (ele sabe jogar botões e faz as pipas mais bonitas que eu já vi) era casado! E descobri que minha mãe era sua mulher. Minha avó Carmela me mostrou um álbum que ficava bem no alto da prateleira da sala, cheio de fotografias do tal casamento, onde, coisa estranha, eu não aparecia. Fiquei tão chocado com tanta coisa feita à minha revelia e sem que nunca ninguém tivesse se dado ao trabalho de me contar, que foi daí que minha fé nos adultos ficou irremediavelmente abalada. Claro, eu era muito pequeno naquela época. Descobri depois que pai e mãe primeiro se casam, depois vêm os filhos, trazidos segundo as avós por cegonhas, grandes aves que chegam da Itália, ou por sementinhas de pássaros e borboletas, segundo minha mãe.
Um homem solteiro, feito tio Alberto, não precisa ir ao supermercado todo fim de semana, nem participar das reuniões da Sociedade Amigos da Vila Paraíso. Ele viaja todo o tempo no seu caminhão, o que não deixa de ser um andarilho motorizado. Talvez eu mude de idéia e seja um motorista de caminhão.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

sin nombre

Outro tango aceso no copo vazio. Beijo líquido, liquidado.
Último ato de união corpo-corpo.
Eis as sobras do medo nosso de cada dia, e da nossa mudança de ares.
Bobagens, é claro.
Você respira por imposição biológica e não porque acredita que está viva.
Você é uma borboleta prostituída, um tipo vermelho de paixão constituída.
Você é essa sua tola idéia de que sou apenas um poeta brutal.
Teu colo, depois do amor, é pântano.
Teus beijos aberturas por onde penetra meu grito de terror.
Tua boca, inatingível caverna.