
Diziam que ele virava lobisomem. Morava num tapera nos fundos do Ferro Velho. Era negro como a noite e tinha um membro enorme, que eu vi um dia, quando brincava de esconde-esconde e já escurecia. Todas as crianças da rua haviam sido descobertas pelo Maneco, enquanto eu permanecia atrás da carroceria de um caminhão carcomido, entre um fogão e a sucata de uma geladeira. Ele urinava solitário, aquela coisa enorme esguichando em círculos e eu quieta, porque se me mexesse talvez Maneco me visse ou o homem se assustasse. Quando terminou, enfiou-se pela tapera escura e eu podia ver o seu vulto pela janela aberta, aumentado mil vezes pela luz de uma vela. Fiquei ali meia hora e não ouvia mais as vozes das crianças. Percebi que já tinham ido para casa, deviam ter cansado de me procurar. Agora já estava com fome e ia apanhar uma sova se chegasse depois do meu pai. Tentei sair sem fazer barulho, mas tropecei num amontoado de latas enferrujadas. Ai, que medo, meu coração dava pinotes quando a figura dele recortou a janela, espiando para fora, quem é que tai? Tinha um vozeirão, bem podia ser mesmo um lobisomem. Daí lembrei as histórias que corriam na vila: ninguém sabia de onde ele vinha, só que pediu emprego para o Messias e já fazia tempo que morava na cabana, tomando conta para as crianças não invadirem . Pensei no seu instrumento e um fogo começou a esquentar o meio das minhas pernas. Antes de ele chegar ali, a gente costumava juntar as meninas e mais o Maneco, e se escondia na cabana, para brincar de médico. O Maneco era o médico, lógico, e sempre mandava entrar uma de cada vez, e a gente tirava a roupa e se deitava no chão forrado de jornal. Daí ele examinava, mandava abrir as pernas e mexia com os dedos, mandava virar de bruços e deitava em cima, com o calção arriado, enquanto arfava. Depois a gente ia para casa com o corpo quente e a sensação de que faltava alguma coisa. Mas agora tinha o lobisomem e ninguém queria mais chegar perto do Ferro Velho. Saí correndo quando vi que ele vinha na minha direção. Cheguei em casa ressabiada, a janta pronta na mesa. Estava imunda, a roupa cheia de ferrugem. Não deixei de levar uns sopapos antes de entrar no chuveiro, esta menina está perdida, ninguém tem controle sobre ela.
Aquele resto do ano não voltei no Ferro Velho, nem passei por perto. À noite, quando já estava deitada, lembrava o pau enorme do crioulo e sentia latejar as minhas partes, imaginando como seria brincar de médico com ele. Era certo que não seria como com o Maneco, não devia ficar aquela coisa sem acabar, tinha que ter um alívio, como aquela vez em que a dona Januária e seu Miguel estavam escondidos atrás da sacristia, no quartinho onde ele dormia, e já tinha acabado o catecismo. Minha mãe lavava a roupa da igreja e me mandou procurar o sacristão, que ia me entregar a carga da semana. A dona Januária dava aulas de catecismo e costumava ameaçar a gente com o fogo do inferno, por causa das brincadeiras com os meninos, mas lá estava ela, com as pernas no ar, enquanto seu Miguel ia e vinha dentro da aranha, de camiseta e meias, ela gemia, isso mesmo, meu amor, com força, ai, que eu já vou, Percebi que não podia interromper, fui ficando, olhando aquela dança louca que não parecia nem um pouco com as brincadeiras do Maneco. Eles não me viam na porta, porque ele estava de costas e ela com os olhos fechados. Tive vontade de botar os dedos por baixo e me apalpar, afinal de contas parecia que todo mundo gostava da coisa, mas, de repente ele roncou alto e ela abriu os olhos e tapou a boca do seu Miguel, saltou da cama com a saia ainda meio levantada, enquanto ele vestia as calças correndo. Depois disso, toda a vez que eu levava a roupa limpa, ganhava mais algum trocado para tomar sorvete no bar da esquina.
O crioulo continuou a povoar as minhas fantasias, enquanto eu crescia e meu corpo passava por transformações. Arrumei um namorado no meio da garotada, um dos muitos Manecos de beijos na última fileira do cinema e amassos no portão. Um dia decidi ir até o barraco. Eu sabia que àquela hora não havia ninguém lá. Era domingo e o futebol vazava dos rádios para a rua, uma tarde quente. O bar da esquina estava cheio de homens, que jogavam sinuca e tomavam cerveja. Eu o tinha visto bebendo sozinho, encostado no balcão.
A porta da tapera não tinha chave, só um ferrolho por dentro. O quarto era uma bagunça de jornais velhos amarrados em fardos, uma espiriteira, uma mesa de caixotes, pão amanhecido num prato de alumínio. A cama era de campanha, com um colchão coberto por lençol de algodão grosseiro. Um calendário com a foto de uma mulher nua enfeitava a parede em frente à cama. Estava desbotado e manchado de água da chuva que devia entrar pelas frestas do barraco.
Deitei na cama à moda de dona Januária, tentando pensar no crioulo, com seu brinquedo, vindo em minha direção. Eu sabia que ele podia chegar a qualquer momento e isso me fazia galopar o coração, mas não arredava pé. Era já muito tarde e o dia já tinha acabado. A lua aparecia e deitava leite nas sucatas. Lua cheia. Ai, pensei, é lua de lobisomem. Um arrepio me pegou a espinha e ouriçou os cabelos. Eu era uma garota atrevida para os meus quatorze anos, estava crescendo todos os dias, o que me fazia parecer uma garça, com os vestidos muito curtos, que minha mãe teimava em aumentar com babados coloridos. O medo de fantasmas e mulas sem cabeça ainda me fazia dormir com as luzes acesas, mas naquela hora não conseguia fugir dali. A possibilidade de que ele chegaria a qualquer momento me deixava louca. Um lobisomem entrando pela porta, com uma enorme arma apontada pra mim, que descobrisse o caminho do alivio e saciasse o fogo entre as minhas pernas. A noite fechava as portas, a cama tinha um cheiro selvagem e eu acabei dormindo.
Devia ser umas dez horas. Senti o mesmo cheiro invadir o quarto e percebi sua presença com a claridade da lua que entrava pela janela escancarada. Fazia calor aquela noite. Era um gigante contra a luz da lua, a barba negra escondia a expressão do rosto, o corpo sem camisa era peludo como um grande animal. Eu comandei o desfecho, atirando a roupa, o peito roliço empinado, os pelos ralos empapados de suor e tesão. O ventre doía, os bicos dos seios se contraiam numa oferta, querendo ser agarrados e sugados e mordidos pelos dentes brancos do lobisomem. Aquela fartura de pelos me atraia feito uma teia de aranha atrai a mosca. Um medo intenso me apossou, porque ele tirava a calça e surgia com sua lança, como eu pensei e sonhei por tanto tempo, como um cavalo, como as figuras das revistinhas sujas que passavam de mão em mão nas rodinhas de meninas, que a gente lia no banheiro e depois saia com o rosto em fogo. O uivo me pegou desprevenida e estremeceu as paredes da cabana. Seus olhos arregalados tinham um brilho de loucura e ele ria um riso de lobo, os dentes como presas em direção ao meu pescoço. O medo me fez agarrá-lo, como se o fato de estar colada a ele me fizesse protegida daquele pavor que crescia e se misturava à vontade de ser penetrada. Os pelos dele fizeram uma ligeira cócega nas minhas pernas, antes de se grudar em mim, e foi como um choque, uma descarga elétrica e então eu soltei a minha força. Nós rosnamos e gritamos. Eu era uma mulher, a minha pele branca e a sua negra, uma fusão de animais, a língua que me percorria, o suor, a dor lancinante, atravessando, me arrebentando em todos os sentidos, meu corpo inteiro cheio, tomado, domado. E então ele explodiu em mim, quente, e o segundo uivo atravessou a janela, o bairro, a cidade, em direção ao céu, em direção à lua, como um bom lobisomem.