sábado, 20 de novembro de 2010

O Anjo da Noite



Às horas mortas,
Todos dormem.
Meus sonhos passeiam pela casa.
O relógio parado
Marca as horas mortas.
Só a lua acompanha meus sonhos
Vazando pela janela.
Alguém se debruça sobre mim
Um rosto antigo
Uma lembrança perdida
Veste-se de branco
Alguém do meu passado
De quem não lembrarei
Quando o dia chegar.

Sonia Nascimento

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Sem ponto final




“... retrato sem cor jogado nos pés. Saudades fúteis, saudades frágeis, meros papéis.”
Chico Buarque de Holanda

Ele

Demora-se na mesa fingindo não notar o garçom, de olho atravessado, enxugando mil vezes o lugar onde o copo de uísque está esquecido. Tem tempo, se quiser pode ficar mais um pouco. Não vai voltar e encontrar Eduarda providenciando algum programa para a noite, deitada no sofá da sala, rodeada de revistas e de celular em punho, procurando o lugar badalado que a Lazinha indicou ainda ontem, quando ele já havia pedido pela oitava vez que “vamos pra casa” e ela fingia não ouvir, os olhos azuis muito arregalados para a amiga, que contava os maiores absurdos sobre a boate da moda.
Lembra que foram aqueles olhos que o enfeitiçaram e o fizeram deixar tudo há apenas um ano. Agora não quer mais saber deles, nem de sua dona, cheia de juventude e energia, louca pela noite de São Paulo, pelos jantares chiques seguidos de horas sem fim nos “dancing”.
Quando não tem o compromisso de hoje, costuma fazer hora até ela sair, fazer suas comprinhas com as amigas, depois elas esticam em algum cinema, o que lhe dá a oportunidade de comer um sanduiche e correr para o quarto, dormir antes que ela chegue. Chama isso “Operação Aborto da Balada”.
Tem quarenta anos mais que ela. No começo os vinte anos de Eduarda eram a sua fonte de juventude. Fazia muito tempo que não se sentia assim, apaixonado. Fez para ela poemas dos quais agora quer esquecer, envergonhado pela infantilidade das trovas – versos de pé quebrado.
Isso foi o ano passado. Agora, reconhece que o que queria era mudar a rotina da sua vida. Mostrar aos amigos que não estava, como eles, caminhando para a morte. Sua empresa estável, depois de quarenta anos passando por altos e baixos de planos econômicos, era um oásis de prosperidade. Seu nome era reconhecido, havia se unido a uma família de peso no ramo, não havia sobressaltos. A mulher, as filhas, o sogro, os netos. Casa no Guarujá, barco, viagens, mas tudo em família. Então, apareceu Eduarda.
Era linda. Amiga da filha mais nova. Os olhos azuis, a voz um tanto rouca, o corpo escultural, não aquele corpo com que sonhava na sua juventude, de curvas e redondezas. Um corpo duro de músculos trabalhados por “personal-trainer”. Suado e dourado. Cabelos louros e tão lisos que pareciam dançar ao menor movimento de sua cabeça. E um sorriso de dentes perfeitos, fruto de aparelhos desde os dez anos, como sua filha.
Não importava que ela falasse só abobrinhas, isso o divertia. Era a sua graça. Não dizer nada sério, gostar de música tecno, ver filmes de romance. Não lia nada, mas quem ligava para isso?
Era doce dormir nos seus braços e quando a beijava o mundo girava e girava. Pediu o divórcio e o sogro retirou-o da sociedade. Isso não o atingiu, tinha um bom nome na praça, iniciou seu próprio negócio. A mulher entrou em depressão, quis morrer, ele não ligou. As filhas se afastaram. Nada disso tinha importância.
Viajaram em lua de mel pela Europa e ela comprou tudo que quis. Parecia uma criança e isso o encantava. Quando voltaram, a lua de mel acabou. Tinha que trabalhar, mas a menina queria festa e romance. Ao dia extenuante do escritório, seguia-se a noite de amor, de farra, de dança, champanhe e mais amor. Agora está tão cansado de Eduarda que não tem vontade de voltar para casa.
Ainda bem que tem o seu encontro secreto. Esperou por ele com ansiedade a semana toda. Paga a conta e o garçom arrisca um sorriso amarelo vendo que ele deixou uma gorjeta na mesa.


Ela
Está feliz, olhando o espelho. Pinta-se e a imagem refletida vai enchendo de cores, como um pintor retocando o auto-retrato.
Escolhe o vestido, um vermelho, com alças finas, sem se importar com sardas do colo e dos braços. E uma sandália de salto, que ajuda a empinar o traseiro. Olha de perfil e vê que está perfeito.
Lembra a moça que levou o marido, uma menina de olhos arregalados e queixo fino, corpo de rapazinho. O que ele viu nela? A garota não tem nada na cabeça! Mas sabe que não pode competir com uma menina de vinte anos. Essa mágoa dorme em algum lugar, lá no fundo.

Quando o marido foi embora, quis morrer. Os dois haviam se conhecido na faculdade, era seu primeiro namorado sério. Casaram e tiveram três filhas. Ela largou o consultório de psicologia para criar as filhas, enquanto ele consolidava o nome da firma do pai, progredindo tanto que se tornou dono.
Nos meses de depressão, viveu num quarto escuro, sem coragem de abrir as janelas, de mudar a camisola, de pentear os cabelos. Não queria acreditar que ele havia ido embora. Era parte dela. Pertencia a ela. Ele a amava, ela sabia, tinha ainda todas as poesias que ele havia feito para ela, que falavam do seu corpo, dos seus olhos, dos seus caminhos. Era um pai perfeito, adorava as meninas, não faria nunca nada para magoá-las. Mas fez.
Então, sarou. Um dia, levantou-se da cama, entrou na banheira e ficou ali, bem uma hora, lavando todos os meses. Deixou-os ir pelo ralo e pôs o melhor vestido, foi ao salão, cortou os cabelos. Rasgou todos os poemas e fez uma montanha com todos os pertences dele, jogando o seu uísque preferido por cima e ateando fogo. Ficou ali, até ver tudo transformado em um montinho de cinzas.
A primeira coisa que fez, depois disso, foi procurar não um psicólogo, como sugeriu sua melhor amiga, mas um cirurgião plástico de fama mundial. Que restaurou seu rosto, seus peitos e cintura. E sua auto-estima. Depois disso, riu à toa, namorou, viajou, aprendeu a dançar flamenco e julgou ter superado tudo.
Não o queria de volta. A vida que levava agora nem se comparava àquela em que havia vivido para ele e para as filhas. Acordava tarde, nua sobre edredons de seda, sem compromissos, doida para se atirar na vida. Mas sentia falta do corpo dele, do cheiro de seu perfume no paletó, dos pés enlaçados quando dormiam.
Um dia, encontraram-se num café. Não podiam fingir que não se conheciam. Eram adultos, tinham três filhas. E trocaram telefones, ao fim de uma conversa aos pouco descontraída. Depois, disso, repetiram os encontros “secretos”, cada vez mais particulares, até que descobriram que queriam, sim, ver-se assim, por toda a vida.

domingo, 14 de novembro de 2010

É Você Tribalistas ( Portuguese lyrics ) Marisa Monte

Poema nº 32




Hospícios e expertos navegantes

Temos visto o chamado dos olhos dos nossos irmãos.
Os que se preparavam para o desastre
neste paredão amarelo cheio de portos.
Crescem hinos à matança.
Que a negociação seja impossível, marinheiros da loucura!
Confundamos nossos algozes com nossos cânticos!
A música será violenta como um veleiro destroçado.

Amor desesperado, oculto, crescendo sob minha pele
Como um lagarto caliente.
Já é hora de poetizar tua próxima morte.

Ânfora de licor mortal. Beber até ser diferente.
Noite de paisagem vermelha
onde crescem demônios em meus escritos.
Queria não te recordar,
amada minha de pele branca e negros cabelos.
Queria não lembrar teu olhar ébrio chegando até minha pele.
Meus dias são inquietos e
minha noite embarcação abandonada entre relâmpagos.
Onde estarão meus irmãos?
Onde dormem esperando?
Pronunciado sol,
não permita que minha pele vacile.
Saquearam minha alma.
O invasor chegou até meu coração e queimou meus olhos,
proibiu meu pranto.

Eu pretendo continuar escrevendo, respirando.
Atiçando o lagarto caliente sob minha pele.
Versos violentos como uma cabeça destroçada.

Nous sommes du soleil.
We love when we play.