quinta-feira, 18 de março de 2010

10 August, 2006
As areias que engolem povos

Gershon Knispel*

Israel precisa aprender as lições da História. A Palestina, desde o início da história da humanidade, foi um alvo estratégico. Tribos e povos combatendo uns aos outros sem conseguir deitar raízes, espalhados em todas as direções, como as errantes tempestades de areia tão típicas dessa paisagem traiçoeira.

Nosso destino, como judeus, não foi melhor. Josué venceu os cananeus, mas Jerusalém foi conquistada seiscentos anos depois por Senaqueribe, rei da Assíria. Ciro, rei dos persas, liquidou Senaqueribe. Os gregos tomaram posse e os romanos, seus herdeiros, provocaram os grandes levantes, sem chances, dos macabeus, Bar Kochba, e Massada.

Começou a Diáspora, que durou mais de dois mil anos – um período três vezes maior do que o período em que os judeus dominaram Jerusalém e Judá. Duas vezes os nossos ancestrais tiveram oportunidade de voltar da Diáspora, justamente quando os árabes tomavam conta da região. Da primeira vez, quando os califas árabes destruíram a ocupação bizantina e abriram os portões de Jerusalém para os judeus.

A derrota dos árabes diante dos cruzados pôs fim a esse idílio. Foi justamente o corajoso combatente muçulmano Saladino que abriu pela segunda vez os portões de Jerusalém aos judeus. Os judeus escreveram, com seus irmãos árabes, as páginas gloriosas da história, naquilo que se chamou a Era de Ouro.

Mas as areias do deserto os atingiram de novo, enquanto o ocupante otomano controlou com mão de ferro os habitantes da Palestina, de maioria árabe e minoria judaica, até que os otomanos foram derrotados pelo general inglês Allenby, na Primeira Guerra Mundial. Os ingleses, no esquema do “divide e impera”, armaram intrigas entre árabes e judeus.

Finda a Segunda Guerra, as Nações Unidas decidiram em 1947 dividir a Palestina entre judeus e árabes. De seu lado, os ingleses mandaram os exércitos do Egito, Jordânia, Iraque, controlados pelos britânicos, e os franceses utilizaram sua influência na Síria para também mandar tropas para aniquilar a possibilidade de criação de Israel. Mas tivemos o apoio da União Soviética, que mandou armas e jovens judeus russos para sustentar a defesa da nação recém-nascida. As linhas do cessar-fogo, no fim dessa guerra, foram muito favoráveis a Israel, pois ampliaram o seu terreno em relação à partilha pela ONU.

Centenas de milhares de refugiados palestinos se tornaram exilados, em campos de refugiados na sua própria Diáspora, parte deles na Jordânia, parte na própria Palestina, no norte do Egito – em Gaza –, na Síria... e, a maioria, no Líbano.

A declaração de Ben Gurion, “Nenhum pedaço de terra vai ser devolvido e nenhum refugiado árabe palestino vai retornar”, não deixou Israel fazer um acordo político nas negociações com os palestinos. E provocou os outros países árabes a fazerem um boicote coletivo contra Israel. O conflito se agravou; palestinos se infiltraram pelas fronteiras do cessar-fogo e atacaram israelenses. As Unidades da Vingança 101, nos anos 1950, lideradas por Ariel Sharon, famosas por sua crueldade, se infiltraram na Jordânia, Líbano e Síria e massacram civis árabes.

A fala muito famosa de Yitzhak Rabin na Guerra dos Seis Dias, como comandante-chefe do Exército, “Não temos o objetivo de anexar qualquer terreno palestino, sírio ou egípcio; esses terrenos vão ser usados como moeda de barganha em troca de paz”, acabou sendo ignorada.

E surgiu em Israel um movimento messiânico, chamado “Grande Israel”, mudando radicalmente a cara de “Israel socialista” para um país que se expande e com pretensões de império.

Jerusalém Oriental, e seus 300 mil habitantes árabes, foi anexada por Israel. Ali surgiram bairros judaicos inteiros com grandes prédios, ignorando as leis até de todos os ocupantes anteriores, que conservaram o casario baixo de pedra, para manter a paisagem bíblica.

De novo foi perdida a oportunidade de liquidar, de vez os campos de refugiados nas terras ocupadas, que, conforme a lei internacional, têm de ser obrigatoriamente cuidados pela potência ocupante. Os refugiados foram utilizados como mão-de-obra barata por patrões judeus, como operários da construção civil e operários rurais.

Os palestinos que chegaram até o Líbano sofreram a influência fatal da aventura de Sharon naquele país, em 1982. O presidente do Líbano nessa época, Bashir Jumail, que foi também o comandante das milícias cristãs, famosas por sua crueldade, se aliou a Sharon para criar “um Novo Oriente Médio”, o que desencadeou a chacina de Sabra e Chatila, campos de refugiados palestinos na periferia de Beirute. De novo os palestinos foram expulsos e se juntaram às tropas da Organização de Libertação da Palestina no êxodo para a Tunísia.

Mas o plano de Sharon de mudar a face do Oriente Médio fez criar um novo movimento nacional de libertação, fundamentalista, libanês, muçulmano, o Hezbollah. Esse novo movimento ficou no encalço dos soldados israelenses e conseguiu a sua retirada do Líbano em 2000. A continuação da perseguição à comunidade palestina nos territórios ocupados levou à primeira Intifada, o levante em massa de todo um povo.

A OLP, na Tunísia, agiu imediatamente. Sua liderança mandou sinais claros de que aceitavam reconhecer Israel, em troca de Israel reconhecer um Estado palestino, respeitadas as fronteiras de 1967. Foi uma mudança significativa em relação à insistência palestina anterior quanto às fronteiras do cessar-fogo. A volta de Rabin como primeiro-ministro fez com que os acordos de Oslo virassem um tratado de paz em Camp David, em 1994. Mas Sharon e Netanyahu conseguiram liquidar o tratado. Rabin foi assassinado por um jovem ortodoxo fanático.

A visita provocadora de Sharon em Al-Aksa teve como resultado a segunda Intifada; o conflito israelense-palestino, que tinha caráter nacional, se tornou um conflito religioso que atinge todo o mundo muçulmano.

Após o 11 de setembro de 2001, Bush começou a nova cruzada contra as “forças do mal”. Sob o guarda-chuva de Bush, Sharon tirou da mesa a proposta dos “territórios em troca de paz”. O herdeiro de Sharon, Ehud Olmert, surpreendeu até a maioria dos seus eleitores, quando declarou, na sua recente visita a Washington, que Jerusalém Oriental não é mais um assunto de negociações. Mas nenhum palestino, nenhum país árabe, nenhum país cristão vai aceitar uma Jerusalém Oriental, anexada por Israel.

E agora, como num cenário surrealista, quarteirões inteiros estão desmoronando sobre seus habitantes em Beirute; de novo como tempestade de areia no deserto, milhares de refugiados fogem do fogo infernal, dando legitimação cada vez maior ao Hezbollah e ao Hamas.

E Bush está agora abrindo mais uma frente para seu novo Oriente Médio até o último soldado de Israel.

*Gershon Knispel é artista plástico israelense e coordenador do projeto "Portas Abertas Caros Amigos, Dois Estados para Dois povos".

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quarta-feira, 17 de março de 2010

"A sintaxe é uma questão de uso, não de princípios. Escrever bem é escrever claro, não necessariamente certo. Por exemplo: dizer "escrever claro" não é certo mas é claro, certo?"
Luis Fernando Veríssimo

terça-feira, 16 de março de 2010

DEBATE ABERTO

Liberdade de Expressão e seus 30 novos significados

Cotejando os temas abordados no Millenium e, principalmente, os conferencistas que lá foram vivamente aplaudidos, podemos imaginar novos significados para o verbete “liberdade de expressão”.

Washington Araújo

Organizado pelo Instituto Millenium realizou-se em São Paulo no dia 1º de março de 2010 o I Fórum Democracia e Liberdade de Expressão congregando a fina flor do empresariado da comunicação brasileira e acolhendo representantes de grandes grupos de mídia da América Latina, em especial da Venezuela e da Argentina, além renomados nomes do colunismo político que brilham em nossos veículos comerciais. Pretendeu ser um contraponto à I Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), cuja etapa nacional ocorreu em Brasília entre os dias 14 a 17 de dezembro de 2009. A Confecom envolveu mais de 20.000 pessoas em todo o país, recepcionou 6.000 propostas originárias das etapas estaduais e aprovou 500 resoluções.

A Confecom de Brasília trouxe à discussão temas como Produção de Conteúdo, Meios de Distribuição e os Direitos e Deveres da Cidadania, o Fórum de São Paulo propunha a defesa de valores como Democracia, Economia de Mercado e o Individualismo.

Todo cidadão brasileiro era bem-vindo para participar da 1ª Confecom. Para assistir ao Fórum Millenium era indispensável o pagamento de R$ 500,00 a título de inscrição. Na Confecom as seis maiores corporações empresariais de veículos de comunicação do Brasil fizeram questão de marcar sua ausência. No Millenium as ausentes se fizeram presentes. Dentre as quais destaco: Associação Brasileira de Empresas de Rádio e Televisão (Abert) e a Associação Nacional dos Jornais (ANJ), entidades que envolvem a Globo, o SBT, a Record, a Folha de S. Paulo, o Estado de S. Paulo, a RBS, Instituto Liberal, Movimento Endireita Brasil (MEB), e outras empresas que decidiram boicotar a I Conferência Nacional de Comunicação, numa demonstração de forte apreço pela democracia. Se essas entidades desejaram evitar o confronto na Confecom mostraram-se pintadas para guerra no Millenium.

Cotejando os temas abordados no Millenium e, principalmente, os conferencistas que lá foram vivamente aplaudidos, posso imaginar que se pretende agregar novos significados ao verbete “liberdade de expressão”.

São eles:

1. Liberdade de expressão é interditar todo e qualquer debate democrático sobre os meios de comunicação.

2. Liberdade de expressão só pode ser invocada pelos que controlam o monopólio das comunicações no país.

3. Liberdade de expressão é bem supremo estando abaixo apenas do Deus-Mercado.

4. Liberdade de expressão é moeda de troca nas eternas rusgas entre situação e oposição.

5. Liberdade de expressão é denunciar qualquer debate sobre mecanismos para termos uma imprensa minimamente responsável.

6. Liberdade de expressão é gerar factóides, divulgar informações sabidamente falsas apenas para aproveitar o calor da luta.

7. Liberdade de expressão é deitar falação contra avanços sociais, contra mobilidade social, contra cotas para negros e índios em universidades públicas.

8. Liberdade de expressão é cartelizar a informação e divulgá-la como capítulos de uma mesma novela em variados veículos de comunicação.

9. Liberdade de expressão é não conceder o direito de resposta sem que antes o interessado passe por toda a via crucis de conseguir na justiça valer seu direito.

10. Liberdade de expressão é explorar a boa fé do povo com programas de televisão que manipulam suas emoções e suas carências oferecendo uma casa aqui outro carro ali e assim por diante.

11. Liberdade de expressão é somente aprovar comentários aptos à publicação em sítio/blog da internet se estes referendarem o pensamento do autor e proprietário do sítio/blog.

12. Liberdade de expressão é ser leviano a ponto de chamar a ditadura brasileira de ditabranda e ficar por isso mesmo.

13. Liberdade de expressão é imputar ao presidente da República comportamento imoral tendo como fundamento depoimento fragmentado da memória de um indivíduo acerca de fato relatado quase duas décadas depois.

14. Liberdade de expressão é apresentar imparcialidade jornalística do meio de comunicação mesmo quando os principais jornalistas fazem de sua coluna tribuna eminentemente partidária.

15. Liberdade de expressão é fazer estardalhaço em torno de um sequestro que não ocorreu há quase 40 anos com a clara intenção de tumultuar o processo político atual.

16. Liberdade de expressão é assacar contra a honra de pessoa pública utilizando documentos de autenticidade altamente duvidosa e depois fazer mea culpa na seção “Erramos”.

17. Liberdade de expressão é submeter decisões editoriais a decisões comerciais de empresas e emissoras de comunicação.

18. Liberdade de expressão é somente dar ampla divulgação a pesquisas de opinião em que os resultados sejam palatáveis ao veículo de comunicação.

19. Liberdade de expressão é não ter visto “Lula, o filho do Brasil” e considerá-lo péssimo produto cinematográfico sem ao menos tê-lo assistido.

20. Liberdade de expressão é minimizar o descaso do poder público ante as enchentes de São Paulo e reduzir candidato à presidência a mero poste.

21. Liberdade de expressão é ter dois pesos em política externa: Cuba é o inferno e China é o paraíso.

22. Liberdade de expressão é demonizar movimentos sociais e defender a todo custo latifúndios vastos e improdutivos.

23. Liberdade de expressão é usar uma concessão pública para aumentar os níveis de audiência com o uso perverso de crianças no papel de vilões.

24. Liberdade de expressão é desqualificar quem não aprecia a programação servida pelo Instituto Millenium.

25. Liberdade de expressão é rejeitar in totum toda e qualquer proposição da Conferência Nacional de Comunicação.

26. Liberdade de expressão é apostar em quem ofereça garantias robustas visando manter o monopólio dos atuais donos da mídia brasileira.

27. Liberdade de expressão é obstruir qualquer caminho que conduza mecanismos de democracia participativa.

28. Liberdade de expressão é fazer coro contra qualquer governo de esquerda e se omitir contra malfeitorias de qualquer governo de direita. Ou vice-versa.

29. Liberdade de expressão é fugir como o diabo foge da cruz de expressões como liberdade, democracia, cidadania, justiça social, controle social da mídia.

30. Liberdade de expressão é lutar para manter o status quo: o direito de informar é meu e ninguém tasca.

Washington Araújo é jornalista e escritor. Mestre em Comunicação pela
UNB, tem livros sobre mídia, direitos humanos e ética publicados no Brasil,
Argentina, Espanha, México. Tem o blog http://www.cidadaodomundo.org
Email - wlaraujo9@gmail.com

Amigas

Clarice era, ela mesma, mais amarga que todos os remédios para o fígado. Juliana a adorava, embora o mau humor da amiga obrigasse a evitar convites. O marido mal a suportava e não a queria em casa. A amizade vinha de infância, não viviam uma sem a outra. Clarice, magra, ferina, rabugenta e brilhante, um sucesso na empresa multinacional. ”-Nunca vou me casar”. Já Juliana fechou o consultório de psicologia para atender à família, que aumentava todos os anos. Era feliz tratando as crianças e o marido, mantendo-os confortáveis e alimentados, as contas em ordem, o mundo sob controle.
Por causa disso, pouco era o tempo para ela. E como Clarice fazia parte das coisas e pessoas que aconteciam do lado de fora da sua casa, foi esquecendo de convidá-la para o chá uma vez por semana, depois para o aniversário das crianças, para o seu próprio , as férias na cidade onde haviam nascido, por fim o Natal.
Mauro, o marido, parecia feliz com isso. “-Que bom ela não ter vindo, eu já não tinha mais assunto!” ou “-Como duas pessoas tão diferentes podem ser amigas assim?”.
Lia nos jornais notícias sobre a carreira em ascensão da amiga. Trocavam telefonemas apressados: ”-Venha me ver” e “-Hoje não posso”. Foi ficando triste com a distância, sentindo falta das risadas, da cumplicidade, das conversas inteligentes e instigantes que Clarice provocava.
Um dia, decidiu fazer visita. Mauro viajando, as crianças com a babá, tomou o ônibus na esquina de casa e desceu a duas quadras, comprou “brioches” e “croissants”. Tinha a chave da portaria, haviam morado juntas até o casamento. O prédio antigo, sem elevador , exigia preparo físico. Chegou exausta no fim do terceiro lance da escada, a tempo de ver Clarice e Mauro na porta, num beijo longo de despedida. Distraídos no carinho nem notaram os pãezinhos caídos do pacote, espalhados sem ruído pelo carpete, enquanto Juliana descia rápida, para longe da cena que jamais reconheceria haver presenciado.