quarta-feira, 22 de setembro de 2010

O Jogo

Sonia Nascimento

Ele olhava os números impressos no cartão e os comparava com o resultado publicado na Tribuna. As pernas bambas precisaram ser amparadas pela cadeira, mas o corpo todo tremia. Se tivesse que falar alguma coisa, tinha certeza de que não ia conseguir, a voz sairia um fio, impedida pelo bolo de angústia que havia se instalado na garganta, dando chance para a crise de asma, que ele adivinhava estar se aproximando. Quem podia pensar que uma coisa dessas fosse acontecer com ele? E, no entanto, ali estavam os números, para não deixar nenhuma dúvida. Todos eles, um por um, como lhe haviam sido soprados pela voz misteriosa no sonho. 12, 19, 21, 35, 44 e 51, eles dançavam diante dos seus olhos de míope. Aproximou mais o jornal, conferiu de novo. Não tinha mais dúvidas, ele havia acertado a mega-sena acumulada em 45 milhões de reais. Olhou em volta, apreensivo. O que devia fazer? A mulher havia saído para fazer as compras do almoço. O cunhado roncava no quarto dos fundos. Havia chegado de madrugada, dava para perceber o estado pelo barulho que fazia batendo nas paredes. Jandira ia chegar a qualquer momento e ficaria furiosa por vê-lo ali, sentado na cadeira, no horário em que devia estar no trabalho.
Saiu de casa correndo, batendo a porta com força para o gato da vizinha não entrar. Na semana anterior tinha posto veneno no leite, mas o gato tinha o diabo como guia e rejeitou a oferta fácil do pires, procurando com classe de gatuno experiente o peixe em cima da pia, posto de molho no limão com sal.
Fugiu dali, do gato, do cunhado e de Jandira, para pensar melhor sobre o que tinha que ser feito. Olhou as mãos calejadas e as unhas encardidas e grossas. Não tinha muita esperança de que as mãos mudassem de forma, mas se era agora milionário, haveria, em algum lugar, médico ou manicure que as tornasse mais apresentáveis. Por enquanto, eram essas mãos que iriam procurar o gerente da Caixa e entregar o cartão premiado. Tinha certeza de que o gerente o deixaria por último na ordem de atendimento. Até ele, se fosse gerente, ia desconfiar de um camarada com a barba por fazer e olhos vermelhos, camisa amassada, calça desbotada.
Andou até o ponto do ônibus, buscando moedas no fundo do bolso para pagar a passagem. Não havia agência de nenhum banco por perto.
“-Banqueiro não é bobo de fazer agência em bairro de gente que não tem dinheiro para botar na conta”. – pensou, contrariado.
O ônibus chegou quase vazio. O horário de trabalho havia passado. Desceu no centro e foi direto para uma agência em frente ao ponto de ônibus, que era justamente a agência onde tinha conta para receber o salário. Enquanto esperava para ser atendido, ficou pensando, desesperado, se não havia se enganado. Tinha esquecido o jornal em casa. O que ia ser dele se de fato estivesse certo? Incontáveis vezes na sua vida havia sonhado com isso: primeiro, era acertar na loto, depois passou para a quina, depois a sena. Os planos foram mudando de acordo com a vida. No começo ia ajudar todo mundo. Os irmãos, a mãe. Os amigos. Depois a mãe morreu, ele casou com Jandira, saiu do interior e foi morar na cidade. Tinha que arrumar emprego. Ela no começo era uma moreninha de pele lisa e peitos fartos, que gostava de sair para dançar e tinha um riso que o deixava tonto. Depois foi ficando triste, mais tarde engordou e se transformou numa mulher amarga, cheia de censuras: “-Tira o sapato, olha o pé no sofá, não vai lavar essa louça?” . No começo queria ganhar no jogo porque não tinha mais esperanças de voltar a estudar, de melhorar de vida com o trabalho. A primeira Jandira merecia uma casa linda, cheia de sol, com muita música vazando pela janela. Essa outra Jandira ele não queria mais.
O gerente o atendeu entediado, olhando o cartão do banco que ele apresentou.
-No que nós podemos ajudar o senhor, seu José? – ele disse, sem tirar os olhos do computador.
-Eu trouxe esse recibo de aposta. O senhor quer fazer o favor de conferir? Ele está premiado.
O gerente ficou abalado. A transformação no seu corpo todo foi cômica e José riu, satisfeito. Mesmo se não tivesse ganhado, já ia valer a pena, porque ele nunca havia sido tratado do jeito que o gerente então passou a faze-lo. Ele se levantou e pegou com a mão dele aquela sua mão grossa e calejada. Sorriu muito, um sorriso amarelo e sem graça, mas farto em gentilezas, o corpo se inclinando muitas vezes. Num instante uma moça bonita apareceu com bandeja de café. O gerente o encaminhou para uma sala e fechou a porta. E se transformou de novo no gerente.
-O senhor pode deixar o recibo conosco. Como já é correntista, a gente vai depositar tudo na sua conta, nós temos uma infinidade de aplicações que vão fazer o seu dinheiro crescer. O senhor precisa assinar essas aplicações. Quer abrir uma outra conta? Já pensou no que vai fazer?
Ele não havia pensado. Seu saber era pouco e por isso mesmo era desconfiado. Não tinha ninguém a quem pedir conselhos e agora estava com medo de ter feito uma burrada. E se esse homem, esse gerente cheio de rapapés, o estivesse enrolando? O cartão estava em cima da mesa e a mão do gerente a meio caminho dele. Foi mais rápido e pegou o cartão, colocando-o na carteira de volta. O gerente tirou um lenço do bolso e limpou o suor do rosto. Estava desligando o celular e agora tornava a rir amarelo para ele.
-Vejo que o amigo está nervoso. Eu também ia estar, se fosse você. A nossa agência é pequena, mas pode ajuda-lo do mesmo jeito que uma grande. Vamos lá, relaxa. Quer outro café, um chá, uma água?
Ele não queria nada. Queria sair dali correndo, não devia ter vindo tão depressa, precisava pensar direito no que fazer com esse prêmio. Uma coisa ele já havia decidido: não ia dizer nada para Jandira. Ela que ficasse ali, com o irmão que não trabalhava e se metia entre os dois, quando brigavam. Ela que comesse aquele caldo ralo que lhe servia todos os dias, quando voltava cansado da fábrica. Ela que ficasse assistindo televisão até de madrugada, que fosse se divertir sozinha no forró, como fazia toda sexta-feira. Que se fartasse de comer os pastéis e empadas e bolos que fazia quando ele estava trabalhando, não lhe guardando nada para o jantar.
- E então, vamos “estar fazendo” negócio? – o gerente o olhava com aquele sorriso estranho, apressando-o.
- “Nada disso. Não vou fazer nada disso”. – ele pensou. E em voz alta disse ao gerente que precisava de mais informações. Que ia conversar com a mulher. Que ia consultar um advogado.
- O senhor deve confiar em mim. Eu sei o que um advogado vai fazer com todo o seu dinheiro, meu amigo. E sua mulher decerto não entende muito de aplicações, não é? Eu tenho um amigo que quer lhe fazer uma proposta irrecusável. Veja bem, ele é do ramo de importações e precisa de cobertura legal para o dinheiro que ganha. Ele lhe oferece a mesma quantia mais dez por cento pelo bilhete.
“-Sim, estou entendendo! Deve me julgar um trouxa. Com essa roupa e as mãos calejadas”. – e alto: – De qualquer forma, eu tenho que pensar. Volto depois do almoço. Até mais tarde.
O homem levantou-se, tentando barrar a sua saída. Ainda estava sorrindo, mas os olhos tinham um brilho de ameaça. Ele passou firme a perna por baixo da do gerente, que tropeçou. Aproveitou para abrir a porta e sair correndo, sob os olhares surpresos dos funcionários. O gerente apareceu na porta, o lenço sobre a testa.
Um cliente que esperava a vez disse ao outro, sentado ao seu lado:
- Acho que os gerentes agora estão pegando pesado! – e riram os dois.
Saiu do banco e o ar era abafado. Sorria para todo mundo que passasse ao seu lado e as pessoas decerto o julgaram um maluco, mas ele não se importou. Havia muitas agências por ali e agora ia tomar mais cuidado.
Entrou na primeira loja e apresentou sua carteira profissional para abrir um crediário Comprou roupas novas e saiu vestido como achou que seria um cliente de banco com dinheiro na conta. Dessa vez o jogo era com ele.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Ele, Ela.





Ele

Claro, é o sol vazando a cortina de filó. Vejo Lola tirando a roupa e seu corpo enxuto parece feito para o flamengo. Linda. Suas pulseiras dançam do punho ao antebraço a cada movimento das mãos, executando a trilha sonora para a encenação que ela faz diante do espelho, o vestido vermelho seguro pela cintura e apertado contra o peito. A cama está cheia de vestidos rejeitados. Sei que ela quer impressionar seu novo amor, o tal pintor que estréia a exposição para a qual estamos indo.

Nosso antigo quarto não tem mais nada meu. Sobre a bancada da janela muitas fotos, nenhuma minha. Todas as minhas roupas estão no quarto do nosso filho, agora que ele mora sozinho.

Um cansaço enorme invade meu corpo e penso que poderia me estender naquele pequeno espaço que sobrou sobre a cama e dormir para sempre. Meu paletó amarrotado vai fazê-la ficar furiosa. Não posso mais encará-la. O copo de uísque já está vazio pela terceira vez e o gelo é apenas um casca fina que desaparece rápido enquanto encho o copo.

Lola se volta para mim , rodando o vestido, e as pulseiras tornam a tilintar. Seus olhos estão brincando de gato e rato, como costuma fazer quando quer me provocar. Eu só penso que não agüento mais o som dessas pulseiras. O álcool aumenta o sono e bocejo sem tentar disfarçar, mas não tenho coragem de dizer-lhe que não quero ir. Que não quero mais participar dessa comédia que é a nossa vida. Que não vou mais tolerar aquele pintorzinho medíocre nem aquela gente falando besteiras sobre arte.

Saio do quarto e desço devagar as escadas, enquanto ela se troca. A porta está tão perto que não resisto, e o ar frio da tarde que cai me dá o fio de ânimo que estava precisando. Atravesso a calçada, a rua, a segunda quadra e de repente meu passo é apressado, estou correndo, estou livre dela para sempre.


Ela


Contemplo os retratos sobre a bancada da janela, na penumbra do quarto. A cortina de filó não impede o sol, que entra no quarto mas não ilumina, agora que o dia já vai terminando. Num dos retratos sou a noiva de branco, um sorriso de anúncio de dentifrício e flores de laranjeira na grinalda. Noutro uma adolescente de cabelos duros de laquê e maquiagem carregada, o mesmo sorriso de muitos dentes, com a clássica pose das dançarinas de flamengo, um braço estendido, o outro para trás, o rosto erguido. Noutra bebês gorduchos no colo, rosto sério, sem sorriso. Crianças. Adolescentes.

Em cima da cama, todos os vestidos. Procuro conter a alegria que me dá experimentá-los em frente ao espelho, rodando e ensaiando os passos da minha dança. Ele me olha através do copo e vejo que não quer sair comigo. Já está bêbado e ainda não são seis horas. Ele sabe que Rodrigo e seu charme, seus quadros, sua paixão, me esperam no salão azul do River Place. Quero um vestido que permita o xale espanhol de minha mãe, tecido em seda fina, como uma teia de aranha. Meus braceletes o irritam, Rodrigo o irrita, os vestidos sobre a cama o irritam. Esta é a minha hora. Olho-o com um sorriso que certamente o irritará. Como uma lagarta na crisálida me deixei ficar todos esses anos, me alimentando dos sonhos aprisionados num álbum de fotografias. Parecia impossível que as asas se desdobrassem e ganhassem o espaço. Nem ele nem eu acreditamos e no entanto alço vôo. Um vôo seguro. Ontem voltei a dançar. As batidas do saltos no palco, as castanholas e toda a paixão explodiram em aplausos. Depois o camarim repleto de flores, luzes, gente, Rodrigo.

Posso ver nos seus olhos que está cansado e meu sorriso é a prova de que não ligo mais. Encerro com esse sorriso os anos de reverência aos seus discos de jazz, ao seu humor fino, aos seus flertes descarados. Estou linda, segurando o vestido vermelho em frente ao espelho e as estrelas nos meus olhos iluminam o quarto, que começa a escurecer com o fim da tarde.

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