Como está na moda falar do inominável, resolvi republicar (não de república, mas de republicação,antes que o rapazinho dos porquês interfira) um conto meu, inspirado em uma cidade imaginária, num reino muito distante e escrito há vários anos anos. Aliás, e como a maioria dos outros contos que fiz, continua inédito no bom papel.
VADE
RETRO
As pedras das ruas são lisas, pretas e escorregadias,
denunciando a idade da cidade. Uma cidadezinha muito velha, de calçadas
estreitas e janelas que dão para a rua, facilitando a comunicação entre os
passantes e os moradores das casas e, naturalmente, a bisbilhotice.
Dona
Maricotinha viu sua vida passar olhando pela janela da casa. Casou-se duas
vezes, da primeira teve um par de filhos que agora moram na capital. Do segundo
casamento, teve mais cinco, esses sim, todos ao seu redor, obedientes e tão
novidadeiros quanto ela. Pois dona Maricotinha é quem sabe mais de todo mundo
na cidade, sempre de doces sorrisos de avó, além dos próprios doces que vende
pela janela o dia todo, enquanto colhe as notícias para passá-las adiante. Uma
fofoqueira, como é conhecida pela maior parte dos habitantes.
Pois
foi esse seu dom que livrou a cidade de uma grande calamidade. Contam à boca
pequena, que ninguém pode mesmo saber se há fundamento, que chegou para morar
na casa antiga do alto do morro um certo figurão, de cuja riqueza ninguém sabia
a origem, mas de fama tal que despertou o interesse da alta sociedade da
cidade. Essa alta sociedade se compunha de dois ou três causídicos, o juiz, o
prefeito, uns tantos médicos, o delegado, o dono do cinema, do supermercado e
das duas farmácias. E ainda suas respectivas filhas e mulheres, que
imediatamente o classificaram de bom partido.
Pois
então, quando esse homem aportou em Santa Maria do Pilar, com seu lindo iate
branco cheio de convidados bronzeados tomadores de champanhe, foi um frisson.
Veio gente dos matos para ver e também a banda, que foi convidada a tocar no cais do
porto, enquanto os passageiros do iate olhavam divertidos a população em suas
melhores roupas, abanando lenços para
eles. Nesse dia foi oferecido pelo prefeito um lauto jantar no Iate Clube de
Santa Maria do Pilar, aberto somente aos sócios e aos novos habitantes e
passageiros do barco. Foi uma farra com o dinheiro público, dizia dona
Maricotinha aos seus clientes, enquanto virava os olhinhos de pardal.
Desde
o início se tomou de grande antipatia pelo novo morador. Não sabia a origem de
seu desassossego, mas o instinto lhe dizia que boa coisa ele não era.
As
moças virgens e casadoiras, filhas dos ricos da cidade, prestavam homenagens ao
galante e ilustre morador, mas ninguém podia se aproximar de sua casa.
Convidados dele eram recebidos no Iate Clube, onde o presidente lhe garantia
uma conta sem tamanho de gastos com lagostas e ostras finas, acompanhadas do
vinho importado por Gomes&Gomes, Maria Gomes e José Gomes, os donos do
supermercado. Vestidas como pinheirinhos de natal, as filhas bem nascidas
disputavam a tapas a atenção do belo moço, de cujos olhos azuis se julgavam
possuidoras.
Isso
já ia de muitos meses, na farra sem fim de jantares no Iate Clube, conta
protelada para quando “o meu contador chegar”. Dona Maricotinha se contorcia em
cólicas, ora vejam, vocês não enxergam que o desconhecido é o dianho, o
tibinga, o inominável? Pois alguém há aqui que lhe tenha visto os pés? Minha
mãe já dizia, quer reconhecer o bicho, pois então lhe faça mostrar os pés.
Não
adiantava nada falar, estavam todos possuídos pelo poder do desconhecido. A
freguesia de doces começou a escassear, dona Maricotinha é contra o progresso.
Ele prometeu-me emprego na capital, de motorista, outro de mordomo, outro ainda
de médico chefe do hospital central. E seus doces encalhados foram parar no
lixo, e cadê dinheiro pra sustentar aquela filharada sem emprego?
Por
isso, e só por isso, decidiu dar um fim naquela comédia. Se eles não enxergavam,
ela ia fazê-los ver bem de perto os sinais de que estavam adorando o coisa
ruim. Chamou o padre e contou um plano. O vigário ficou louco de brabo, ameaçou
interná-la, excomungá-la, onde se viu, um homem tão bom e generoso, havia
escolhido a cidade para morar com seus queridos amigos. Dono de um iate daquele
porte, de caixas e mais caixas de champanhe legítimo.
Resolveu
valer-se dos filhos desempregados para a missão que Deus lhe destinou. Um baile
havia sido marcado, onde seria coroada a Rainha do Festival da Primavera. Todas
as moças sabiam que a escolhida por certo seria a eleita do ilustre morador da
cidade. Para essa festa foram encomendadas as flores mais perfumosas, os peixes
mais carnudos, as lagostas mais saborosas, o vinho mais caro. Gelo em
abundância para o champanhe, roupas da melhor grife da capital. E os doces da
sobremesa, quem vai fazer? Torciam o nariz, mas na cidade ninguém melhor que a
velhinha fofoqueira para fazer doces, que sabiam aos manjares dos deuses.
Em
comissão, as matronas foram à casa da esquina mais movimentada da cidade. Janelas
fechadas, nenhuma bulha, e batem até que ela atende, como quem regateia acaba
negociando um preço nem de longe sonhado, que lhe cobriria o prejuízo dos
últimos meses. Mal sabiam que ela exultava no seu íntimo pela oportunidade de
desmascarar o diacho do homem.
No
cardápio, estavam incluídos os papos de anjo, os pasteizinhos de Belém, as
queijadinhas, quindins, bem-casados e até os olhos de sogra, sua especialidade.
Muita calda, sorvetes de cajá, de carambola, pudim de maracujá. E chegou o dia.
Dona
Maricotinha na cozinha do Iate clube - espremida entre o cozinheiro francês
trazido da capital pelo prefeito e os garçons vestidos de branco, passando com
bandejas acima da cabeça e o nariz pro teto - rezava no seu terço de contas de
vidro uma novena em intenção de Santa Maria das Dores do Pilar, padroeira da cidade.
Rezava e excomungava o cão, que lá no salão, se fazia acompanhar da cambada de
puxa-sacos.
Chegou
o grande momento da sobremesa. Ela mesma serviria, com os cinco filhos
enfileirados e vestidos de pingüim, por ordem das autoridades presentes,
arranjadoras da festa. Dona Maricotinha pendurou no pescoço um crucifixo que
havia comprado para a ocasião, benzido pelo bispo e mandado pelo correio por um
dos filhos da capital. Armou-se de água benta, colocada numa bacia de louça,
onde espargiu gotas de água de colônia. Explicou para a mulher do prefeito, que
estranhava aquela peça despropositada, que os convidados que comiam papos de
anjo lambuzavam os dedos e precisavam lavar as mãos na água perfumada, o que
era considerado muito chique pelas pessoas que freqüentavam a sociedade na
capital.
Apresentou primeiro ao convidado de honra sua
bandeja composta das melhores iguarias que havia preparado. Sua fama já havia
chegado ao ilustre senhor, que todo faceiro separou num prato os papos de anjo,
os quindins, as compotas de jaca. Foi um descuido? A velhinha tropeça na saia
comprida e derruba sobre o convidado a água benta. Foi um estouro de enxofre, o
fedor terrível tomou conta do ambiente, uma nuvem amarela cobriu tudo e levou
bem uma meia hora até que todos, tontos e de olhos vermelhos, pudessem achar a
saída do salão, correndo pelas ruas e chorando sem querer chorar lágrimas de
puro enxofre.
Até
hoje ninguém sabe dar conta do ilustre senhor e da sua corte. Muita moça casadoira
jura que tudo não passou de um plano terrível daquela bruxa malvada para
afastar o bom partido, mas quem estava ali jura que viu o capeta estourando em
uma nuvem de fumaça, sumindo pra nunca mais.
Dona
Maricotinha voltou a vender seus doces, enquanto se incumbe de passar as
novidades da cidade. É respeitada pelo padre, pelo prefeito e demais
autoridades, que recorrem a ela quando querem fechar negócios com estrangeiros
e gente da capital.