terça-feira, 3 de março de 2015

Memórias I

A felicidade é um domingo de sol

            Lembro de que, quando era criança, aos domingos, eu e minha irmã acordávamos muito cedo, assim que o sol nascia e vazava pelas frestas da veneziana. No teto, apareciam invertidas as sombras das palmeiras de um terreno baldio que ficava em frente à nossa casa. Aquilo me intrigava e eu me punha a pensar. Não demorava muito e a sombra sumia. Era como uma senha para nós: invadíamos o quarto dos meus pais e nós enfiávamos pela coberta, felizes, apertadas entre eles. Contávamos nossas novidades, minha mãe contava histórias, meu pai cantava. Era domingo, todos estavam de folga, podíamos ficar ali, jogando conversa fora, rindo. Meu pai fazia cócegas. Minha irmã gostava de se fazer de bebê, com aquela fala atrapalhada. Eu achava ridículo, mas ela era a caçula e eles se deliciavam com aquilo.
            Minha mãe levantava e preparava o café. Eu tomava banho correndo para alcançar a missa desde o início. Ia junto com meu pai, que saia para comprar o jornal. No almoço havia sempre carne assada de panela, com um molho ferrugem divino e batatas coradas, maionese e macarrão. Depois havia a “matinée” no cinema, com seriados – Tarzan e a Mulher  Leopardo, O incrível Dr. No, Roy Rogers – desenhos, filmes de “cowboy”, o intervalo para drops, paqueradas e troca de gibis e, finalmente o filme em cartaz. Eram filmes muito antigos, dos anos quarenta e cinquenta. O dono do cinema possuía uma coleção de raridades e repetia os filmes com muita frequência. Nossa  grande alegria era quando ele adquiria ou alugava um filme novo. O cinema era de madeira, um grande barracão que esquentava muito no verão. As cadeiras de madeira eram desconfortáveis, mas ninguém  se importava com isso. O cinema era o nosso mundo mágico.

            Depois do cinema tinha sorvete. Eu voltava para casa com o som dos rádios pela rua, irradiando o jogo de futebol. Vinha chutando pedras, distraída, cismando sobre a fita, pensando no garoto que fazia sucesso com as meninas, no bolo de fubá que me esperava, com café cheiroso, o pão suiço quentinho e a manteiga de verdade, amarelinha, derretendo.