quinta-feira, 7 de outubro de 2010

A pedidos: o livro que desnuda Serra, Dantas e a privataria

O Conversa Afiada recebeu de amigo navegante mineiro o texto que serve de introdução ao livro “Os porões da privataria” de Amaury Ribeiro Jr.

É um trabalho de dez anos de Amaury Ribeiro Jr, que começou quando ele era do Globo e se aprofundou com uma reportagem na IstoÉ sobre a CPI do Banestado.

Não são documentos obtidos com espionagem – como quer fazer crer o PiG (*), na feroz defesa de Serra.

É o resultado de um trabalho minucioso, em cima de documentos oficiais e de fé pública.

Um dos documentos Amaury Ribeiro obteve depois de a Justiça lhe conceder “exceção da verdade”, num processo que Ricardo Sergio de Oliveira move contra ele. E perdeu.

O processo onde se encontram muitos documentos foi emcaminhado à Justiça pelo notável tucano Antero Paes e Barros, devidamente derrota na última eleição, e pelo relator da CPI do Banestado, o petista José Mentor.

Amaury mostra, pela primeira vez, a prova concreta de como, quanto e onde Ricardo Sergio recebeu pela privatização.

Num outro documento, aparece o ex-sócio de Serra e primo de Serra, Gregório Marin Preciado no ato de pagar mais de US$ 10 milhões a uma empresa de Ricardo Sergio.

As relações entre o genro de Serra e o banqueiro Daniel Dantas estão esmiuçadas de forma exaustiva nos documentos a que Amaury teve acesso. O escritório de lavagem de dinheiro Citco Building, nas Ilhas Virgens britânicas, um paraíso fiscal, abrigava a conta de todo o alto tucanato que participou da privataria.

Não foi a Dilma quem falou da empresa da filha do Serra com a irmã do Dantas. Foi o Conversa Afiada.

Que dedica a essa assunto – Serra com Dantas – uma especial atenção.

Leia a introdução ao livro que aloprou o Serra:

Os porões da privataria

Quem recebeu e quem pagou propina. Quem enriqueceu na função pública. Quem usou o poder para jogar dinheiro público na ciranda da privataria. Quem obteve perdões escandalosos de bancos públicos. Quem assistiu os parentes movimentarem milhões em paraísos fiscais. Um livro do jornalista Amaury Ribeiro Jr., que trabalhou nas mais importantes redações do país, tornando-se um especialista na investigação de crimes de lavagem do dinheiro, vai descrever os porões da privatização da era FHC. Seus personagens pensaram ou pilotaram o processo de venda das empresas estatais. Ou se aproveitaram do processo. Ribeiro Jr. promete mostrar, além disso, como ter parentes ou amigos no alto tucanato ajudou a construir fortunas. Entre as figuras de destaque da narrativa estão o ex-tesoureiro de campanhas de José Serra e Fernando Henrique Cardoso, Ricardo Sérgio de Oliveira, o próprio Serra e três dos seus parentes: a filha Verônica Serra, o genro Alexandre Bourgeois e o primo Gregório Marin Preciado. Todos eles, afirma, tem o que explicar ao Brasil.

Ribeiro Jr. vai detalhar, por exemplo, as ligações perigosas de José Serra com seu clã. A começar por seu primo Gregório Marín Preciado, casado com a prima do ex-governador Vicência Talan Marín. Além de primos, os dois foram sócios. O “Espanhol”, como (Marin) é conhecido, precisa explicar onde obteve US$ 3,2 milhões para depositar em contas de uma empresa vinculada a Ricardo Sérgio de Oliveira, homem-forte do Banco do Brasil durante as privatizações dos anos 1990. E continuará relatando como funcionam as empresas offshores semeadas em paraísos fiscais do Caribe pela filha – e sócia — do ex-governador, Verônica Serra e por seu genro, Alexandre Bourgeois. Como os dois tiram vantagem das suas operações, como seu dinheiro ingressa no Brasil …

Atrás da máxima “Siga o dinheiro!”, Ribeiro Jr perseguiu o caminho de ida e volta dos valores movimentados por políticos e empresários entre o Brasil e os paraísos fiscais do Caribe, mais especificamente as Ilhas Virgens Britânicas, descoberta por Cristóvão Colombo em 1493 e por muitos brasileiros espertos depois disso. Nestas ilhas, uma empresa equivale a uma caixa postal, as contas bancárias ocultam o nome do titular e a população de pessoas jurídicas é maior do que a de pessoas de carne e osso. Não é por acaso que todo dinheiro de origem suspeita busca refúgio nos paraísos fiscais, onde também são purificados os recursos do narcotráfico, do contrabando, do tráfico de mulheres, do terrorismo e da corrupção.

A trajetória do empresário Gregório Marin Preciado, ex-sócio, doador de campanha e primo do candidato do PSDB à Presidência da República mescla uma atuação no Brasil e no exterior. Ex-integrante do conselho de administração do Banco do Estado de São Paulo (Banespa), então o banco público paulista – nomeado quando Serra era secretário de planejamento do governo estadual, Preciado obteve uma redução de sua dívida no Banco do Brasil de R$ 448 milhões (1) para irrisórios R$ 4,1 milhões. Na época, Ricardo Sérgio de Oliveira era diretor da área internacional do BB e o todo-poderoso articulador das privatizações sob FHC.

(Ricardo Sergio é aquele do “estamos no limite da irresponsabilidade. Se der m… “, o momento Péricles de Atenas do Governo do Farol – PHA)
Ricardo Sérgio também ajudaria o primo de Serra, representante da Iberdrola, da Espanha, a montar o consórcio Guaraniana. Sob influência do ex-tesoureiro de Serra e de FHC, mesmo sendo Preciado devedor milionário e relapso do BB, o banco também se juntaria ao Guaraniana para disputar e ganhar o leilão de três estatais do setor elétrico (2).

O que é mais inexplicável, segundo o autor, é que o primo de Serra, imerso em dívidas, tenha depositado US$ 3,2 milhões no exterior através da chamada conta Beacon Hill, no banco JP Morgan Chase, em Nova York. É o que revelam documentos inéditos obtidos dos registros da própria Beacon Hill em poder de Ribeiro Jr. E mais importante ainda é que a bolada tenha beneficiado a Franton Interprises. Coincidentemente, a mesma empresa que recebeu depósitos do ex-tesoureiro de Serra e de FHC, Ricardo Sérgio de Oliveira, de seu sócio Ronaldo de Souza e da empresa de ambos, a Consultatun. A Franton, segundo Ribeiro, pertence a Ricardo Sérgio.

A documentação da Beacon Hill levantada pelo repórter investigativo radiografa uma notável movimentação bancária nos Estados Unidos realizada pelo primo supostamente arruinado do ex-governador. Os comprovantes detalham que a dinheirama depositada pelo parente do candidato tucano à Presidência na Franton oscila de US$ 17 mil (3 de outubro de 2001) até US$ 375 mil (10 de outubro de 2002). Os lançamentos presentes na base de dados da Beacon Hill se referem a três anos. E indicam que Preciado lidou com enormes somas em dois anos eleitorais – 1998 e 2002 – e em outro pré-eleitoral – 2001. Seu período mais prolífico foi 2002, quando o primo disputou a presidência contra Lula. A soma depositada bateu em US$ 1,5 milhão.

O maior depósito do endividado primo de Serra na Beacon Hill, porém, ocorreu em 25 de setembro de 2001. Foi quando destinou à offshore Rigler o montante de US$ 404 mil. A Rigler, aberta no Uruguai, outro paraíso fiscal, pertenceria ao doleiro carioca Dario Messer, figurinha fácil desse universo de transações subterrâneas. Na operação Sexta-Feira 13, da Polícia Federal, desfechada no ano passado, o Ministério Público Federal apontou Messer como um dos autores do ilusionismo financeiro que movimentou, através de contas no exterior, US$ 20 milhões derivados de fraudes praticadas por três empresários em licitações do Ministério da Saúde.

O esquema Beacon Hill enredou vários famosos, entre eles o banqueiro Daniel Dantas. Investigada no Brasil e nos Estados Unidos, a Beacon Hill foi condenada pela justiça norte-americana, em 2004, por operar contra a lei.

Percorrendo os caminhos e descaminhos dos milhões extraídos do país para passear nos paraísos fiscais, Ribeiro Jr. constatou a prodigalidade com que o círculo mais íntimo dos cardeais tucanos abre empresas nestes édens financeiros sob as palmeiras e o sol do Caribe. Foi assim com Verônica Serra. Sócia do pai na ACP Análise da Conjuntura, firma que funcionava em São Paulo em imóvel de Gregório Preciado, Verônica começou instalando, na Flórida, a empresa Decidir.com.br, em sociedade com Verônica Dantas, irmã e sócia do banqueiro Daniel Dantas, que arrematou várias empresas nos leilões de privatização realizados na era FHC.

Financiada pelo banco Opportunity, de Dantas, a empresa possui capital de US$ 5 milhões. Logo se transfere com o nome Decidir International Limited para o escritório do Ctco Building, em Road Town, ilha de Tortola, nas Ilhas Virgens Britânicas. A Decidir do Caribe consegue trazer todo o ervanário para o Brasil ao comprar R$ 10 milhões em ações da Decidir do Brasil.com.br, que funciona no escritório da própria Verônica Serra, vice-presidente da empresa. Como se percebe, todas as empresas tem o mesmo nome. É o que Ribeiro Jr. apelida de “empresas-camaleão”. No jogo de gato e rato com quem estiver interessado em saber, de fato, o que as empresas representam e praticam é preciso apagar as pegadas. É uma das dissimulações mais corriqueiras detectada na investigação.

Não é outro o estratagema seguido pelo marido de Verônica, o empresário Alexandre Bourgeois. O genro de Serra abre a Iconexa Inc no mesmo escritório do Ctco Building, nas Ilhas Virgens Britânicas, que interna dinheiro no Brasil ao investir R$ 7,5 milhões em ações da Superbird. com.br que depois muda de nome para Iconexa S.A…Cria também a Vex capital no Ctco Building, enquanto Verônica passa a movimentar a Oltec Management no mesmo paraíso fiscal. “São empresas-ônibus”, na expressão de Ribeiro Jr., ou seja, levam dinheiro de um lado para o outro.

De modo geral, as offshores cumprem o papel de justificar perante o Banco Central e à Receita Federal a entrada de capital estrangeiro por meio da aquisição de cotas de outras empresas, geralmente de capital fechado, abertas no país. Muitas vezes, as offshores compram ações de empresas brasileiras em operações casadas na Bolsa de Valores. São frequentemente operações simuladas tendo como finalidade única internar dinheiro nas quais os procuradores dessas offshores acabam comprando ações de suas próprias empresas… Em outras ocasiões, a entrada de capital acontecia através de sucessivos aumentos de capital da empresa brasileira pela sócia cotista no Caribe, maneira de obter do BC a autorização de aporte do capital no Brasil. Um emprego alternativo das offshores é usá-las para adquirir imóveis no país.

Depois de manusear centenas de documentos, Ribeiro Jr. observa que Ricardo Sérgio, o pivô das privatizações — que articulou os consórcios usando o dinheiro do BB e do fundo de previdência dos funcionários do banco, a Previ, “no limite da irresponsabilidade” conforme foi gravado no famoso “Grampo do BNDES” — foi o pioneiro nas aventuras caribenhas entre o alto tucanato. Abriu a trilha rumo às offshores e as contas sigilosas da América Central ainda nos anos 1980. Fundou a offshore Andover, que depositaria dinheiro na Westchester, em São Paulo, que também lhe pertenceria…

Ribeiro Jr. promete outras revelações. Uma delas diz respeito a um dos maiores empresários brasileiros, suspeito de pagar propina durante o leilão das estatais, o que sempre desmentiu. Agora, porém, existe evidência, também obtida na conta Beacon Hill, do pagamento da US$ 410 mil por parte da empresa offshore Infinity Trading, pertencente ao empresário, à Franton Interprises, ligada a Ricardo Sérgio.

(1)A dívida de Preciado com o Banco do Brasil foi estimada em US$ 140 milhões, segundo declarou o próprio devedor. Esta quantia foi convertida em reais tendo-se como base a cotação cambial do período de aproximadamente R$ 3,2 por um dólar.
(2)As empresas arrematadas foram a Coelba, da Bahia, a Cosern, do Rio Grande do Norte, e a Celpe, de Pernambuco.

(*) PiG: Em nenhuma democracia séria do mundo, jornais conservadores, de baixa qualidade técnica e até sensacionalistas, e uma única rede de televisão têm a importância que têm no Brasil. Eles se transformaram num partido político – o PiG, Partido da Imprensa Golpista.

Pequeno tratado sobre a vida



Olhou impiedosamente para a própria imagem refletida no espelho do banheiro, procurando os sinais da idade. O espelho embaçado, limpo apenas na área do rosto, transformava-a num fantasma conhecido. Procurou pelas manchas, as antigas, que já havia tratado com ácidos e produtos declarados milagrosos pelas revistas femininas, mas que teimavam em agonia-la, impávidas, resistentes. As novas já se deixavam adivinhar sob a pele, incipientes sardas opacas. Sorriu para a imagem e os dentes, que eram seu orgulho, brilharam um tanto amarelados. Limpou o espelho com a mão até a área do busto, reparando as rugas que se formavam no colo sardento. O peito, firme para a idade, revelou a pele branca, o bico rosado e desbotado. Não queria, mas com firmeza, passou a toalha por toda a superfície do espelho, fitando com desgosto a cintura e o quadril, deformados pela gordura, mas as pernas ainda estavam firmes, a superfície lisa e branca, a pele fina sobre os músculos.
Suspirou e terminou de enxugar-se, espalhando creme onde achava necessário. O ritual a deixava exausta e já não lhe dava prazer. Queria poder vestir todos os dias uma roupa especial e diferente, como as que usava quando era jovem e trabalhava. Nada de jeans e camiseta com ela. Eram saias longas de seda e batas indianas, sandálias de enlouquecer podólatras. Mas esse tempo havia passado, o clima havia esquentado, não sabia de nada que pudesse vestir sem que morresse de calor.
O quarto parecia desabitado sem ele. Era amplo, com guarda-roupas antigos, de madeira maciça, herdados da avó, com um cheiro bom de creme de móveis, que ela mesma passava nos fins de semana, conjurando os demônios para eliminar do mundo as empregadas relapsas. Deitou na cama, sentindo no travesseiro o cheiro dele. A tentação de permanecer deitada era grande, mas sabia que se cedesse corria o risco de voltar a ficar doente, por isso pulou ligeira e desceu as escadas, fingindo que não via a imagem que os espelhos espalhados por todos os cantos da casa refletiam à sua passagem. Não queria olhar-se de novo. Não gostava daquela mulher de cabelos brancos que agora habitava o seu corpo.
O aroma de café fresco animou-a. Era urgente sair de casa antes que percebesse que não havia mais rotina de panelas cheirosas, de mesa posta com capricho. Almoçar no restaurante por quilo, perambular pela cidade nas lojas de 1,99, entrar num salão de bingo. Esquecer da vida, dos netos, dos filhos, de como agora sua vida era um abrir e fechar de portas que davam sempre para um quarto escuro, que era ela mesma e sua solidão.
Antes que abrisse a porta, o telefone tocou. Queria já ter saído, pensou em não atender, mas sabia que nunca conseguiria resistir ao zumbido de um telefone.
-Mamãe, você vai sair hoje? – A voz da filha traia a preocupação, embora ela se esforçasse por parecer casual e alegre. Ela a conhecia, ah, como conhecia tão bem todos eles.
-Já estou de saída, quer alguma coisa da rua? – Ela também procurou parecer despreocupada, mas sabia que a filha era igual a ela e que continuariam o teatro, as duas, fingindo.
-Não. Queria convida-la para o cinema à tarde. Entreguei ontem a encomenda para o restaurante italiano e gostaria de comemorar, ir à uma confeitaria, um cineminha, comprar uma bobagem no shopping. – A quem ela pensa que engana?
-Não posso. Combinei com as irmãs Pascoala de passar na creche.
-Você não vai ficar em casa mesmo, não é? Por que eu posso passar aí e pegar você. – A voz da filha já tinha o toque de alarme, mas ela ficou firme.
-Não se preocupe, querida, eu estou com a tarde cheia de compromissos.
A filha insistiu um pouco mais e desistiu, desligando.
Pronto. A diarista assoviava animada, com vassouras e baldes de água. Precisava sair dali antes que desandasse a ajuda-la e então estaria perdida.
Parecia que há tão pouco tempo as crianças enchiam a casa de coisas fora do lugar. Sapatos, cadernos, agasalhos, revistas. Saiu batendo a porta, desesperada por encontrar alguma coisa que a animasse, uma conversa inteligente, um livro novo de alguém que ainda estivesse vivo e tivesse alguma coisa a ver com ela.
-Todo mundo está indo embora! – pensou.
Mas estava pensando nele. Em como gostavam de entrar numa livraria, num sebo, cada um para um lado, enchendo as cestinhas, e se encontrando no caixa com cara de culpados. Em como ficavam horas discutindo seus pontos de vista sobre o filme que haviam assistido, ele à força de muita conversa convencido a sair de casa. Em como gostavam os dois de jantar no Alemão, tomar um submarino e descer o Largo da Ordem em silêncio, observando os bêbados e os jovens de roupas coloridas.
Quantas vezes pensou em como seria bom ficar sozinha? Milhares, sempre que tinha um monte de louça e pilhas de roupas para lavar, quando a divisão dos trabalhos domésticos era injusta e o orçamento apertado não permitia passeios pelas lojas nem um chopinho aos domingos.
Lá fora estava frio, o vento de maio cortando a alma em fatias geladas. Seus olhos arderam e ela fingiu acreditar que era o frio o responsável. O agasalho era confortável, tinha posto luvas e provavelmente pareceria uma velhinha elegante. Quase sentiu sobre o braço o peso da mão dele, que gostava de guia-la como uma criança enquanto caminhavam.
Quando se conheceram, ela estava saindo de um casamento longo e sem vida. O filho teimava em acompanha-la, ciumento das roupas novas e da mãe reciclada, mas ele a fazia parecer uma adolescente, driblando a vigilância das crias, mandando rosas para o trabalho, levando-a para dançar. Ela havia ficado surpresa com o poeta escondido em camisetas vermelhas com slogans. Era um sindicalista de barbas negras e olhar insano, mas tinha alma de passarinho aquele homem que já fora magoado. Trouxe na bagagem apenas suas camisetas e bandeiras. Ela foi sabiamente substituindo-as por roupas mais apresentáveis, mas foi só o que conseguiu mudar. Sua alma de guerrilheiro permaneceu íntegra, mesmo quando os companheiros se incorporaram àquilo que nós chamamos sistema. Sua barba negra foi branqueando até tornar-se de algodão. Parecia ter uma saúde de ferro e no entanto se fora numa manhã de verão, a mão no peito, o olhar de surpresa para ela, sem volta.
Quis ir junto. Tentou duas vezes, os filhos se alternavam na vigilância, resgatando-a com firmeza. O último neto era uma bolinha loira de olhos abertos para tudo. Não resistiu ao seu apelo de vida, e foi saindo aos poucos de dentro daquela cela sem sons e sem cores. Um pouco de carinho, um livro novo do Chico Buarque, o disco da Maria Rita, a feirinha do Largo.
Agora aquele novo inverno chegando, o primeiro sem ele. Nunca conseguiria explicar aos filhos o que sentia, mas não lhes daria mais nenhum desgosto. Se tinha que ficar, então ficaria, e levaria adiante esse corpo que não era o seu, cheio de marcas e impossibilidades.
Uma mulher vinha na direção oposta, e por uns instantes pensou ser ela mesma, os cabelos tingidos de fogo, as maçãs do rosto atrevidas, o passo firme na calçada. Mas a moça passou por ela sem vê-la, como ela mesma havia passado tantas vezes por outras mulheres, indiferente, o olhar no seu próprio futuro.
Sorriu para ela e a cumprimentou, mesmo sabendo que não teria resposta. E seguiu para o seu almoço, pensando em comprar no caminho um brinquedo para o neto.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Poema nº 2



Paulo Cequinel

Nada é tanto
que não possa
voar
passar
valer
pintar
cantar
gritar
falar
ousar
falhar

Nada é menos
ponto
vírgula
viagem
chegar
mesmo

Tudo
calmo
mesmo
que
alvoroço
em
meu
coração