Acordo com a sensação de que o sonho está instalado ao meu redor, persistindo, permeando o quarto, as vozes contornando a cama. O cheiro de café e um som de risos abafados vindos de algum lugar mais distante me dão a certeza de que é dia, mas meu corpo recusa o comando de qualquer movimento. Estranho que o coração não galope com esse jeito inesperado de acordar. Os olhos estão semi-abertos e aos poucos a cena ao redor começa a fazer sentido, a certeza chegando devagar, embora eu me negue a acreditar.
A penumbra está se dispersando. Percebo que estava enganada quanto ao lugar onde me encontro: não é meu quarto, tampouco minha cama o local onde meu corpo jaz, depositado numa caixa suspensa a um metro do chão.
Num canto desse aposento estranho, possivelmente uma capela de velório, entre parentes e amigos, estão Francisco e Regina. Ela segura a mão dele. Um gesto que pode ser interpretado como de apoio e encorajamento, muito apropriado para a ocasião.
Minha tia Marieta chora, enquanto tenta enfiar entre meus dedos duros um rosário de contas de vidro que eu conheço desde criança. Ganhei de presente quando fiz a primeira comunhão. Nas missas de domingo, costumava rodar as bolinhas de cristal entre os dedos, fingindo rezar, o pensamento na sessão de cinema onde ia ver Francisco, quem sabe lhe conceder um beijo ou permitir uma carícia mais ousada. Tia Marieta aprovava meu olhar alheado. Jurava para minha mãe que eu tinha vocação para freira, como ela.
O fio de pensamento é interrompido bruscamente. Meu corpo todo se move por dentro como um vulcão. Posso sentir as vidas que começam a embrionar-se, brotando como folhas verdes dentro do meu coração.
Sinto medo. O quevai acontecer agora?
Uma voz sufocada e confusa me traz para o aposento:
- Tem certeza que ela se matou?
Minha filha Luiza chora convulsivamente, com as mãos sobre meu corpo. Compreendo que esta será a versão oficial da minha morte. Vai ser um escândalo na cidade. Se o padre Inácio ainda fosse vivo meu corpo não teria paz em campo santo. As beatas não rezarão no velório, mas o padre novo não vai criar obstáculos para o enterro no cemitério, na cripta da família.
Se tudo é um sonho, esta é a hora certa para acordar.
Grito. Sons enlouquecidos, abafados, mas nem eu sou capaz de ouvi-los. Tento abrir mais os olhos, depois fechá-los, mas nada acontece. A fumaça das velas está me sufocando. Ninguém percebe todo esse esforço. Luiza ainda chora, mas agora já é um pranto manso, consolada pelo pai.
Vejo os movimentos dos dedos de Regina, apertando a mão de Francisco, acariciando seu rosto. Vestida de preto, ela tem um ar de autoridade maior do que ostentou em toda a sua vida. Seus óculos escuros escondem, de forma apropriada, os olhos oblíquos.
Eu, pelo menos, sei que seus olhos sorriem. Tudo corre de acordo com o que se espera de um velório. Todos vestem roupas apropriadas, o cafezinho servido pelas nossas tias vem acompanhado de bolinhos e biscoitos. Ninguém chora fora do tom. Enfim, tudo dentro dos padrões de Regina.
Ninguém vai desconfiar que ela é responsável pela doença prolongada que me levou.Deve ter levado anos ministrando algum veneno secreto. Doses pequenas, para não levantar suspeitas. Uma ou outra mais forte no final. Veneno cumulativo, destruindo aos poucos meus projetos, transformando minha vida, me tirando a dignidade.
Desde criança ela queria tudo que era meu. Minhas bonecas, minhas amigas, meu namorado. Não tinha mãe, mas havia conquistado a minha, que, por sua causa, casou-se com meu pai. Era mais bonita, mais inteligente, mas isso não a consolava.
Seu ódio era uma coisa natural para mim. Cresci acostumada a esse olhar de cabra que me seguia. Nunca disse como me sentia, nem a ela, nem a ninguém. Ela era perfeita. Cuidou da minha mãe, do nosso pai, da avó. Recebia as tias que apareciam uma vez por semana em casa, para uma disfarçada inspeção nos móveis, quadros e tapetes decadentes, depois que mamãe morreu. Criou minha filha, foi a enfermeira perfeita e nunca deixou que Francisco se preocupasse com a direção da casa, poupando-o das queixas e dos problemas domésticos.
Só no fim compreendi. Ontem, antes de dormir, ela entrou no quarto e havia uma luz de felicidade no seu rosto. Parecia uma menina esperando pelo primeiro baile. Eu estava fraca e enjoada, recusei a xícara de chá que ela me ofereceu. O xale de minha mãe estava sobre os seus ombros. Era meu, uma herança da avó espanhola. Ela sabia que eu nunca ia permitir que o usasse. O xale era uma disputa antiga entre nós e ficou para mim na divisão dos objetos da minha mãe, por sua vontade, manifestada diante das tias, o que legitimou a posse.
Ela me desafiou com o olhar. Enrolou o xale no pescoço branco, retirou os óculos e soltou os cabelos. A injeção da noite ficou esquecida na bandeja. Eu quis dizer alguma coisa, mas desisti. Estava sem forças e achei que não valia a pena discutir sobre coisas aborrecidas. O xale ainda seria meu no dia seguinte. Deixei que ela me convencesse a tomar o chá e nem vi quando saiu do quarto. Devo ter adormecido em seguida.
Agora estou aqui, num pesadelo que nunca termina. Ainda continuo tentando falar, mas os músculos enrijeceram e a acusação se perde na confusão das lembranças.
Regina me olha e, como se quisesse certificar-se, chega perto de meu rosto, sem importar-se com o hálito da morte. Seus olhos por trás dos óculos escuros estão brilhando, impregnados ainda daquela felicidade juvenil com que se apresentou no meu quarto ontem.
Arruma as flores e ajeita o terço. O choro na sala aumentou e já compreendi que vão cobrir o caixão. Não consigo segurar essa mão que me cerra com firmeza a fresta dos olhos e baixa a tampa escura, para que o silêncio se instale para sempre dentro do ataúde, enquanto dentro de mim brotam raízes.