sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Pequeno Tratado Sobre a Vida


Hoje não resisti e resolvi me exibir um pouquinho. Ou muito. Honrada por ter recebido de LFV o prêmio pelo conto abaixo, isso em dezembro de 2005, lá se vão seis anos. De todo modo, para que os netos acreditem.


Pequeno Tratado sobre a Vida

Olhou impiedosamente para a própria imagem refletida no espelho do banheiro, procurando os sinais da idade. O espelho embaçado, limpo apenas na área do rosto, transformava-a num fantasma conhecido. Procurou pelas manchas, as antigas, que já havia tratado com ácidos e produtos declarados milagrosos pelas revistas femininas, mas que teimavam em agoniá-la, impávidas, resistentes. As novas já se deixavam adivinhar sob a pele, incipientes sardas opacas. Sorriu para a imagem e os dentes, que eram seu orgulho, brilharam um tanto amarelados. Limpou o espelho com a mão até a área do busto, reparando as rugas que se formavam no colo sardento. O peito, firme para a idade, revelou a pele branca, o bico rosado e desbotado. Não queria, mas com firmeza, passou a toalha por toda a superfície do espelho, fitando com desgosto a cintura e o quadril, deformados pela gordura, mas as pernas ainda estavam firmes, a superfície lisa e branca, a pele fina sobre os músculos.

Suspirou e terminou de enxugar-se, espalhando creme onde achava necessário. O ritual a deixava exausta e já não lhe dava prazer. Queria poder vestir todos os dias uma roupa especial e diferente, como as que usava quando era jovem e trabalhava. Nada de jeans e camiseta com ela. Eram saias longas de seda e batas indianas, sandálias de enlouquecer podólatras. Mas esse tempo havia passado, o clima havia esquentado, não sabia de nada que pudesse vestir sem que morresse de calor.

O quarto parecia desabitado sem ele. Era amplo, com guarda-roupas antigos, de madeira maciça, herdados da avó, com um cheiro bom de creme de móveis, que ela mesma passava nos fins de semana, conjurando os demônios para eliminar do mundo as empregadas relapsas. Deitou na cama, sentindo no travesseiro o cheiro dele. A tentação de permanecer deitada era grande, mas sabia que se cedesse corria o risco de voltar a ficar doente, por isso pulou ligeira e desceu as escadas, fingindo que não via a imagem que os espelhos espalhados por todos os cantos da casa refletiam à sua passagem. Não queria olhar-se de novo. Não gostava daquela mulher de cabelos brancos que agora habitava o seu corpo.

O aroma de café fresco animou-a. Era urgente sair de casa antes que percebesse que não havia mais rotina de panelas cheirosas, de mesa posta com capricho. Almoçar no restaurante por quilo, perambular pela cidade nas lojas de 1,99, entrar num salão de bingo. Esquecer da vida, dos netos, dos filhos, de como agora sua vida era um abrir e fechar de portas que davam sempre para um quarto escuro, que era ela mesma e sua solidão.

Antes que abrisse a porta, o telefone tocou. Queria já ter saído, pensou em não atender, mas sabia que nunca conseguiria resistir ao zumbido de um telefone.

-Mamãe, você vai sair hoje? – A voz da filha traia a preocupação, embora ela se esforçasse por parecer casual e alegre. Ela a conhecia, ah, como conhecia tão bem todos eles.

-Já estou de saída, quer alguma coisa da rua? – Ela também procurou parecer despreocupada, mas sabia que a filha era igual a ela e que continuariam o teatro, as duas, fingindo.

-Não. Queria convidá-la para o cinema à tarde. Entreguei ontem a encomenda para o restaurante italiano e gostaria de comemorar, ir à uma confeitaria, um cineminha, comprar uma bobagem no shopping. – A quem ela pensa que engana?

-Não posso. Combinei com as irmãs Pascoala de passar na creche.

-Você não vai ficar em casa mesmo, não é? Por que eu posso passar aí e pegar você. – A voz da filha já tinha o toque de alarme, mas ela ficou firme.

-Não se preocupe, querida, eu estou com a tarde cheia de compromissos.

A filha insistiu um pouco mais e desistiu, desligando.

Pronto. A diarista assoviava animada, com vassouras e baldes de água. Precisava sair dali antes que desandasse a ajudá-la e então estaria perdida.

Parecia que há tão pouco tempo as crianças enchiam a casa de coisas fora do lugar. Sapatos, cadernos, agasalhos, revistas. Saiu batendo a porta, desesperada por encontrar alguma coisa que a animasse, uma conversa inteligente, um livro novo de alguém que ainda estivesse vivo e tivesse alguma coisa a ver com ela.

-Todo mundo está indo embora! – pensou.

Mas estava pensando nele. Em como gostavam de entrar numa livraria, num sebo, cada um para um lado, enchendo as cestinhas, e se encontrando no caixa com cara de culpados. Em como ficavam horas discutindo seus pontos de vista sobre o filme que haviam assistido, ele à força de muita conversa convencido a sair de casa. Em como gostavam os dois de jantar no Alemão, tomar um submarino e descer o Largo da Ordem em silêncio, observando os bêbados e os jovens de roupas coloridas.

Quantas vezes pensou em como seria bom ficar sozinha? Milhares, sempre que tinha um monte de louça e pilhas de roupas para lavar, quando a divisão dos trabalhos domésticos era injusta e o orçamento apertado não permitia passeios pelas lojas nem um chopinho aos domingos.

Lá fora estava frio, o vento de maio cortando a alma em fatias geladas. Seus olhos arderam e ela fingiu acreditar que era o frio o responsável. O agasalho era confortável, tinha posto luvas e provavelmente pareceria uma velhinha elegante. Quase sentiu sobre o braço o peso da mão dele, que gostava de guiá-la como uma criança enquanto caminhavam.

Quando se conheceram, ela estava saindo de um casamento longo e sem vida. O filho teimava em acompanhá-la, ciumento das roupas novas e da mãe reciclada, mas ele a fazia parecer uma adolescente, driblando a vigilância das crias, mandando rosas para o trabalho, levando-a para dançar. Ela havia ficado surpresa com o poeta escondido em camisetas vermelhas com slogans. Era um sindicalista de barbas negras e olhar insano, mas tinha alma de passarinho aquele homem que já fora magoado. Trouxe na bagagem apenas suas camisetas e bandeiras. Ela foi sabiamente substituindo-as por roupas mais apresentáveis, mas foi só o que conseguiu mudar. Sua alma de guerrilheiro permaneceu íntegra, mesmo quando os companheiros se incorporaram àquilo que nós chamamos sistema. Sua barba negra foi branqueando até tornar-se de algodão. Parecia ter uma saúde de ferro e no entanto se fora numa manhã de verão, a mão no peito, o olhar de surpresa para ela, sem volta.

Quis ir junto. Tentou duas vezes, os filhos se alternavam na vigilância, resgatando-a com firmeza. O último neto era uma bolinha loira de olhos abertos para tudo. Não resistiu ao seu apelo de vida, e foi saindo aos poucos de dentro daquela cela sem sons e sem cores. Um pouco de carinho, um livro novo do Chico Buarque, o disco da Maria Rita, a feirinha do Largo.

Agora aquele novo inverno chegando, o primeiro sem ele. Nunca conseguiria explicar aos filhos o que sentia, mas não lhes daria mais nenhum desgosto. Se tinha que ficar, então ficaria, e levaria adiante esse corpo que não era o seu, cheio de marcas e impossibilidades.

Uma mulher vinha na direção oposta, e por uns instantes pensou ser ela mesma, os cabelos tingidos de fogo, as maçãs do rosto atrevidas, o passo firme na calçada. Mas a moça passou por ela sem vê-la, como ela mesma havia passado tantas vezes por outras mulheres, indiferente, o olhar no seu próprio futuro.

Sorriu para ela e a cumprimentou, mesmo sabendo que não teria resposta. E seguiu para o seu almoço, pensando em comprar no caminho um brinquedo para o neto.

Clarice Lispector




Fernando Py

Clarice Lispector nasceu em TchetcheInik Ucrânia, em 10 de dezembro de 1920, de família russa que fugia às perseguições contra judeus da então URSS. Chegou ao Brasil com dois meses de idade; a família reside por algum tempo em Maceió, transferindo-se para o Recife em 1924. Clarice passa a infância na capital pernambucana, estudando no Grupo Escolar João Barbalho e depois no Ginásio Pernambucano. Em 1930 perde a mãe e, três anos depois, o pai se muda para o Rio de Janeiro, onde Clarice termina o ginásio e inicia um período de muitas leituras, principalmente Júlia Diniz, Eça de Queiroz, José de Alencar e Dostoievski. Descobre Katherine Mansfield em 1938. Entra para a Faculdade de Direito em 1940, ano em que falece o pai. Em 1942, principia a escrever seu primeiro romance, Perto do coração selvagem, publicado em 1944. Em 1943, naturaliza-se brasileira e casa com um colega de curso, diplomata Maury Gurgel Valente. Passa a acompanhar o marido em seus postos no exterior e, em 1944, já formada, principia a escrever O Lustre, seu segundo romance, publicado em 1946.

Em 1949, nasce em Berna, Suíça, seu primeiro filho, Pedro. No mesmo ano publica o terceiro romance, A cidade sitiada. Volta ao Rio de Janeiro no ano seguinte. Em 1951, residindo em Torkway, na Inglaterra, escreve os primeiros esboços de A maçã no escuro, romance que só será publicado em 1961. De 1952 a 1960, Clarice reside nos Estados Unidos. Em 1952, publica Alguns contos. Em 1953, nasce o segundo filho, Paulo. Em 1959, separa-se do marido e, no ano seguinte, publica o volume de contos Laços de família, passando a residir no Rio de Janeiro em definitivo, junto com os filhos. Em 1962, recebe o prêmio Carmem Dolores Barbosa, em São Paulo, por A maça no escuro. Em 1964, publica o romance A paixão segundo G. H. e o volume de contos A Legião Estrangeira.

Em 1967, fere-se gravemente num incêndio em seu apartamento. No mesmo ano ganha o prêmio Calunga pela publicação do infanto-juvenil O mistério do coelho pensante e inicia colaboração regular no Jornal do Brasil, escrevendo crônicas até dezembro de 1973. Em 1969, publica Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres e ganha o Golfinho de Ouro; no ano anterior saíra seu segundo infanto-juvenil, A mulher que matou os peixes. Em 1971, Clarice publica um novo livro de contos, Felicidade clandestina e, em 1973, Água viva, longo texto ficcional em forma de monólogo. Em 1974, saem os contos eróticos de A via-crúcis do corpo, além dos textos cursos de Onde estivestes de noite e mais uma história infanto-juvenil, A vida íntima de Laura. Em 1977, publica o romance A hora da estrela. Falece, vítima de câncer, a 9 de dezembro desse ano, um dia antes do seu 57° aniversário natalício. Postumamente, publicaram-se diversos inéditos de Clarice Lispector, sobretudo Um sopro de vida: pulsações (1979) e A descoberta do mundo (1984).

Quando Clarice Lispector estreou com Perto do coração selvagem, a crítica recebeu o romance com entusiasmo. Louvou-se nele a "mais séria tentativa de romance introspectivo" (Sérgio Milliet), e Antônio Cândido previu na autora a afirmação de "um dos valores mais sólidos... mais originais de nossa literatura". Os romances seguintes, sobretudo A maçã no escuro e A paixão segundo G.H., além dos contos de Laços de Família, aprofundam uma visão do mundo muito pessoal e a técnica narrativa se aperfeiçoa, numa linguagem ricamente metafórica (a ponto de já ter sido chamada de poética) e de grande coerência, numa abordagem pode-se dizer fenomenológica. A introspecção, em Clarice, serve-lhe menos para esmiuçar o psicologismo das personagens do que para pesquisar as razões metafísicas de sua existência. Aliás, quando falamos em coerência, queremos dizer justamente um constante predomínio, em sua ficção, do aspecto indagador diante do sentido da existência e da vida, de tal modo que às vezes – senão sempre – a criação propriamente dita cai para o segundo plano. Desde pelo menos A maça no escuro, acentua-se o processo de subjetivismo em Clarice. Já em A paixão segundo G.H., a criação praticamente inexiste, e o livro todo é mera especulação do pensamento. Mas Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres estabelece uma espécie de relação isomórfica entre a história de Lóri e Ulisses e a própria narrativa: trata-se de fato de uma "aprendizagem" tanto no terreno das relações entre os personagens quanto da própria escrita do livro. É a história de um progressivo domínio da linguagem da própria autora face aos personagens. À medida que o livro avança, Clarice vai se assenhoreando da linguagem até assumi-la plenamente a partir do episódio da piscina.

Pode-se ver, em toda a obra de Clarice, o cunho do Existencialismo. Porém, as implicações filosóficas da angustiosa busca da liberdade num mundo cada vez mais absurdo não se impõe a priori na sua ficção. As características introspectivas de seus livros sofrem um pequeno desvio no último romance que publicou em vida. A hora da estrela oferece três planos de narração: a história de uma nordestina, Macabéia, um narrador cuja história pessoal se interpõe no texto, refletindo a sua vida na da personagem, e um terceiro plano, o ato de escrever um romance, isto é, a história da própria narrativa. Os três planos acabam se fundindo no final, o narrador confessa que acaba de morrer com a moça, e o romance finda com suas últimas palavras.

De qualquer maneira, a grande preocupação de Clarice em seus livros sempre foi a linguagem. Em todos os seus contos e romances, há essa permanente busca pela linguagem, nesse trato da linguagem sempre renovadora, Clarice Lispector experimentou o seu modo de narrar e estruturar seus livros, criando uma das obras mais singulares da nossa literatura.



Matéria publicada em 01/02/2001 - Edição Número 18

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Hoje seria aniversário dela.Tony Bennett & Amy Winehouse - Body And Soul

VADE RETRO



As pedras das ruas são lisas, pretas e escorregadias, denunciando a idade da cidade. Uma cidadezinha muito velha, de calçadas estreitas e janelas que dão para a rua, facilitando a comunicação entre os passantes e os moradores das casas e, naturalmente, a bisbilhotice.

Dona Maricotinha viu sua vida passar olhando pela janela da casa. Casou-se duas vezes, da primeira teve um par de filhos que agora moram na capital. Do segundo casamento, teve mais cinco, esses sim, todos ao seu redor, obedientes e tão novidadeiros quanto ela. Pois dona Maricotinha é quem sabe mais de todo mundo na cidade, sempre de doces sorrisos de avó, além dos próprios doces que vende pela janela o dia todo, enquanto colhe as notícias para passá-las adiante. Uma fofoqueira, como é conhecida pela maior parte dos habitantes.

Pois foi esse seu dom que livrou a cidade de uma grande calamidade. Contam à boca pequena, que ninguém pode mesmo saber se há fundamento, que chegou para morar na casa antiga do alto do morro um certo figurão, de cuja riqueza ninguém sabia a origem, mas de fama tal que despertou o interesse da alta sociedade da cidade. Essa alta sociedade se compunha de dois ou três causídicos, o juiz, o prefeito, uns tantos médicos, o delegado, o dono do cinema, do supermercado e das duas farmácias. E ainda suas respectivas filhas e mulheres, que imediatamente o classificaram de bom partido.

Pois então, quando esse homem aportou em Santa Maria do Pilar, com seu lindo iate branco cheio de convidados bronzeados tomadores de champanhe, foi um frisson. Veio gente dos matos para ver e a banda, que foi convidada a tocar no cais do porto, enquanto os passageiros do iate olhavam divertidos a população em suas melhores roupas, abanando lenços para eles. Nesse dia foi oferecido pelo prefeito um lauto jantar no Iate Clube de Santa Maria do Pilar, aberto somente aos sócios e aos novos habitantes e passageiros do barco. Foi uma farra com o dinheiro público, dizia dona Maricotinha aos seus clientes, enquanto virava os olhinhos de pardal.

Desde o início se tomou de grande antipatia pelo novo morador. Não sabia a origem de seu desassossego, mas o instinto lhe dizia que boa coisa ele não era.

As moças virgens e casadoiras, filhas dos ricos da cidade, prestavam homenagens ao galante e ilustre morador, mas ninguém podia se aproximar de sua casa. Convidados dele eram recebidos no Iate Clube, onde o presidente lhe garantia uma conta sem tamanho de gastos com lagostas e ostras finas, acompanhadas do vinho importado por Gomes&Gomes, Maria Gomes e José Gomes, os donos do supermercado. Vestidas como pinheirinhos de natal, as filhas bem nascidas disputavam a tapas a atenção do belo moço, de cujos olhos azuis se julgavam possuidoras.

Isso já ia de muitos meses, na farra sem fim de jantares no Iate Clube, conta protelada para quando “o meu contador chegar”. Dona Maricotinha se contorcia em cólicas, ora vejam, vocês não enxergam que o desconhecido é o dianho, o tibinga, o inominável? Pois alguém há aqui que lhe tenha visto os pés? Minha mãe já dizia, quer reconhecer o bicho, pois então lhe faça mostrar os pés.

Não adiantava nada falar, estavam todos possuídos pelo poder do desconhecido. A freguesia de doces começou a escassear, dona Maricotinha é contra o progresso. Ele prometeu-me emprego na capital, de motorista, outro de mordomo, outro ainda de médico chefe do hospital central. E seus doces encalhados foram parar no lixo, e cadê dinheiro pra sustentar aquela filharada sem emprego?

Por isso, e só por isso, decidiu dar um fim naquela comédia. Se eles não enxergavam, ela ia fazê-los ver bem de perto os sinais de que estavam adorando o coisa ruim. Chamou o padre e contou um plano. O vigário ficou louco de brabo, ameaçou interná-la, excomungá-la, onde se viu, um homem tão bom e generoso, havia escolhido a cidade para morar com seus queridos amigos. Dono de um iate daquele porte, de caixas e mais caixas de champanhe legítimo.

Resolveu valer-se dos filhos desempregados para a missão que Deus lhe destinou. Um baile havia sido marcado, onde seria coroada a Rainha do Festival da Primavera. Todas as moças sabiam que a escolhida por certo seria a eleita do ilustre morador da cidade. Para essa festa foram encomendadas as flores mais perfumosas, os peixes mais carnudos, as lagostas mais saborosas, o vinho mais caro. Gelo em abundância para o champanhe, roupas da melhor grife da capital. E os doces da sobremesa, quem vai fazer? Torciam o nariz, mas na cidade ninguém melhor que a velhinha fofoqueira para fazer doces, que sabiam aos manjares dos deuses.

Em comissão, as matronas foram à casa da esquina mais movimentada da cidade. Janelas fechadas, nenhuma bulha, e batem até que ela atende, como quem regateia acaba negociando um preço nem de longe sonhado, que lhe cobriria o prejuízo dos últimos meses. Mal sabiam que ela exultava no seu íntimo pela oportunidade de desmascarar o diacho do homem.

No cardápio, estavam incluídos os papos de anjo, os pasteizinhos de Belém, as queijadinhas, quindins, bem-casados e até os olhos de sogra, sua especialidade. Muita calda, sorvetes de cajá, de carambola, pudim de maracujá. E chegou o dia.

Dona Maricotinha na cozinha do Iate clube - espremida entre o cozinheiro francês trazido da capital pelo prefeito e os garçons vestidos de branco, passando com bandejas acima da cabeça e o nariz pro teto - rezava no seu terço de contas de vidro uma novena em intenção de Santa Maria das Dores do Pilar, padroeira da cidade. Rezava e excomungava o cão, que lá no salão, se fazia acompanhar da cambada de puxa-sacos.

Chegou o grande momento da sobremesa. Ela mesma serviria, com os cinco filhos enfileirados e vestidos de pingüim, por ordem das autoridades presentes, arranjadoras da festa. Dona Maricotinha pendurou no pescoço um crucifixo que havia comprado para a ocasião, benzido pelo bispo e mandado pelo correio por um dos filhos da capital. Armou-se de água benta, colocada numa bacia de louça, onde espargiu gotas de água de colônia. Explicou para a mulher do prefeito, que estranhava aquela peça despropositada, que os convidados que comiam papos de anjo lambuzavam os dedos e precisavam lavar as mãos na água perfumada, o que era considerado muito chique pelas pessoas que freqüentavam a sociedade na capital.

Apresentou primeiro ao convidado de honra sua bandeja composta das melhores iguarias que havia preparado. Sua fama já havia chegado ao ilustre senhor, que todo faceiro separou num prato os papos de anjo, os quindins, as compotas de jaca. Foi um descuido? A velhinha tropeça na saia comprida e derruba sobre o convidado a água benta. Foi um estouro de enxofre, o fedor terrível tomou conta do ambiente, uma nuvem amarela cobriu tudo e levou bem uma meia hora até que todos, tontos e de olhos vermelhos, pudessem achar a saída do salão, correndo pelas ruas e chorando sem querer chorar lágrimas de puro enxofre.

Até hoje ninguém sabe dar conta do ilustre senhor e da sua corte. Muita moça casadoira jura que tudo não passou de um plano terrível daquela bruxa malvada para afastar o bom partido, mas quem estava ali jura que viu o capeta estourando em uma nuvem de fumaça, sumindo pra nunca mais.

Dona Maricotinha voltou a vender seus doces, enquanto se incumbe de passar as novidades da cidade. É respeitada pelo padre, pelo prefeito e demais autoridades, que recorrem a ela quando querem fechar negócios com estrangeiros e gente da capital.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

"Causos" de Antonina V


Jouber, ex – prefeito e patrimônio vivo de Antonina.

Jouber tem muitas histórias. Alguém deveria tomar notas de todas e compor um livro.Uma delas é esta:

O povo clamava por novos empregos e dona Munira Peluzo, conhecida como Mônica, resolveu organizar uma passeata de mulheres para sensibilizar o prefeito. Acontece que faltaram mulheres e ela completou a passeata com crianças, e lá se foram pelas ruas. Por ordem de Jouber, a prefeitura fechou as portas. Quando a passeata chegava à prefeitura, liderada por Mônica, Madalena e Deise (da Ponta da Pita), o prefeito ordenou que abrissem a porta. Na frente da passeata vinha um repórter do canal 12, chamado pela Mônica. As crianças gritavam “Queremos Trabalho”. O secretário do prefeito era contra ele receber os manifestantes, mas Jouber disse ter incorporado Odorico Paraguaçu: agarrou as duas líderes (Mônica e Deise) pelo braço e sempre sorridente para as câmeras, sussurrou: “fiquem quietas e vamos em frente”. De braços dados às duas, atravessou a rua XV, acabando com a passeata. Na frente do bar, hoje chamado Caravelas, ali perto do Teatro Municipal, dispersou os manifestantes, pagando cerveja pra todo mundo, inclusive os repórteres.