sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Rapidinha

Circula nos bastidores da "grobal" que uma certa "especialista em economia" tem um bafo de matar a onça. Deve ser o cheiro da alma dela.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Feliz Ano Novo - um conto da virada do milêmio

 Sonia Nascimento
            Ele era muito tímido. Estava sentado numa cadeira desconfortável, esperando o garçom que circulava com bebidas. Tinha perdido a conta dos copos que esvaziou e já não se lembrava o que tinha bebido (uísque, vinho branco, um Martini desses industrializados com uma azeitona magra espetada num palito). Não queria levantar-se, pois sabia que ia bambear e vomitar no arranjo de flores sobre a mesa, ou nas outras coisas que a dona da festa pôs no caminho para atormentar os convidados. A dona da festa era sua chefe. Certamente ficou penalizada com a situação em que ele se encontrava, sozinho numa cidade estranha, na virada do milênio. Agora, se teve oportunidade de observá-lo, devia estar arrependida do convite.
            - Por que fui beber tudo?- achou que havia só pensado, mas acabou falando, ao mesmo tempo em que procurava com os olhos uma bandeja de salgadinhos. Certamente a fome contribuiu para aumentar o enjôo e os canapés sem calorias que estavam servindo não ajudavam. Não havia na mesa do bufê alguma coisa em que pudesse cravar os dentes.
Agora estava encalacrado naquela cadeira dura, tentando parecer sóbrio.
Viu aquela mulher maravilhosa, um transatlântico, navegando em sua direção, disposta a abalroar seu barquinho oscilante.  Lembrava-se de ter sido apresentado a ela quando chegou, mas não o nome e nada que pudesse falar para salvá-lo do vexame que ia dar.
-Pensando alto na vida? – ela disse, divertida.
-É... – tentou articular as palavras, mas viu que se continuasse ela ia constatar seu estado.- “E agora? Um mulheraço assim e eu desse jeito!” – pensou.
-Você está bem?
-Acho que já deu para perceber que eu bebi demais-decidiu ser sincero.
            -Quer ajuda? Não se preocupe com os outros, a maioria também já bebeu bastante, a festa toda é um porre. Vamos, levanta, que eu te seguro.
A tentativa foi um desastre: ergueu-se rápido demais e, como as mesas, as cadeiras e o mundo passaram a girar descontroladamente, desabaram os dois, ela sobre ele, o vestido curto subindo e mostrando mais que as pernas.
 –Que pernas! – pensou, e pediu desculpas, achando que ela ouviu o comentário. Sentiu que ficou vermelho, tentou arrumar-se e não pode. Deixou a cabeça estender-se sobre a grama, num gesto de total rendição ao carrossel à sua volta.
Ela viu que suas pernas estavam à mostra, ali perto um grupo babava. Arrumou-se e tentou levantar, mas seu braço estava debaixo das costas do rapaz.
Deram-se conta do ridículo em que estavam metidos. O grupo ávido levantou-se e veio correndo na direção deles. Foi a última coisa que ele conseguiu registrar daquela festa.

-0-

-Um ano passa rápido, principalmente hoje em dia. Aí , Iron Maiden, já notou como o tempo agora anda descontrolado? A Soraya ontem comentou que os esotéricos já sabem o que está acontecendo, parece que é alguma coisa de um pêndulo desequilibrado. Eu lembro, como se fosse ontem, o que fiz no “‘reveillon’’ do ano passado. E tu, meu irmão?”.
Esse cara sempre falava com ele de um jeito meio irônico. Era o Maneco, o “boy” do gabinete da superintendência.
-Caraca, mano! Acho que eu lembro melhor que todo mundo, mas ao mesmo tempo não me lembro de nada. Eu devo ter dado o maior vexame. Sabe a Marisa? O ano passado eu estava lotado na seção dela. Garota legal. Acho que deve estar arrependida até os ossos de ter me convidado para a casa dela. Eu danei a beber e fiquei de porre. Cara, uma morena quis me ajudar e eu não lembro mais nada. No dia seguinte acordei em casa, de ressaca. Não lembro como cheguei, quem me levou. Até hoje não consigo conversar direito com a Marisa. Ganhei uma transferência pra cá no dia seguinte, o que em parte foi sorte, assim não preciso encarar aquele povo todo que estava na festa. A única coisa que me deixa grilado é a morena. Como é mesmo o nome? Alice, Anália...Ângela, cara, isso mesmo, umas pernas! Ela deu o maior mole. Nem sei qual é a relação dela com a Marisa.
-Ângela? Eu conheço uma Ângela, mas não deve ser a mesma. Essa que eu conheço é uma dessas mulheres que não são pro nosso bico. Morena, alta, pernas e peitos. Cabelão preto. Olhos verdes, perfumada, carrão, seguranças. É a mulher do diretor geral da firma, muito simpática, mas se alguém se meter a besta com ela, cara, tá encrencado, pode crer. Eu sei de umas coisas – cá pra nós, não é coisa pra se comentar por aí. Sei de um carinha que andou se engraçando pro lado dela e, meu, o cara sumiu. Sumiu, entendeu? Nunca mais vi o cara. Trabalhava no almoxarifado. Não pediu demissão, nada. O irmão dele veio perguntar, deram queixa no DP. Tem umas estórias que ele foi levado pelos ET’s, mas o negócio é sério. Você nunca ouviu falar dele? Se for essa Ângela, você tem sorte de ainda estar por aqui, cara. – Maneco apanhou as faturas  e saiu, fazendo um gesto obsceno e passando uma faca imaginária pelo pescoço.
Na bandeja de entrada a correspondência do dia ainda não tinha sido tocada. Ele viu o envelope do departamento financeiro bem em cima e um pressentimento bobo lhe avisou que era da Marisa.
-Besteira. Ela nem fala mais comigo.
Mas era. E o convite dessa vez era caprichado, impresso em relevo. “Iron Maiden, Departamento de Transportes”. Queria conhecer o sacana que tinha lhe arranjado aquele apelido.
Começou a fazer planos. Uma beca caprichada, vai que a morena pintasse no lugar. Um lustre no carro, mandar lavar os bancos, tirar o fedor de morrinha, lembrança do cachorro ridículo da Cida, que era obrigado a transportar pra cima e pra baixo.”-Ai, mozinho, leva o Titico pro” pet-shop “?” - E ele enchendo o carro de titica.
E se a morena não fosse? Na verdade, ele não lembrava direito nem como era a tal morena. Sabia que ela era muito, mas quanto? Que cor eram os olhos, qual era a altura dela – ele nem era tão alto, será que ela ia lhe dar bola? E o pior, será que ela era mesmo a mulher do chefe?
Se fosse, ele estava roubado. Mas não, não podia ser. O Maneco não disse que tinha um bando de seguranças em volta dela? A sua morena não parecia segura assim. Tinha vindo na sua direção livre, leve, solta. Ele lembrava a cena em câmara lenta, ela, o vestido curtinho, os peitos, os cabelos, o batom vermelho, dentes, eles rolando pela grama, tudo preto. Corta para a cena do quarto, a luz do sol entrando pela janela e fuzilando sua cabeça. Só teve certeza que a coisa toda tinha mesmo acontecido quando deu pela roupa espalhada pelo quarto – sua melhor camisa suja de alguma coisa vermelha – batom, sangue? E que ressaca! Alguém o trouxe para casa, tirou a sua roupa, deitou-o na cama.
-O negócio é conferir. Vamos lá, de barriguinha cheia, que aqueles canapés verdes não são pra mim. Nada de uisquinhos, só cerveja. Sem acompanhante. E ver no que dá.

Parecia reprise. Mesmo jardim, a linda piscina, luzes de natal pelas árvores, mesas brancas, toalhas brancas, arranjos de frutas, cestas de flores, mesinhas com coquetéis, toneladas de canapés de todas as nuances do verde. Marisa linda, de vestido prateado de lantejoulas, na porta, recebendo os convidados.  As cadeiras de plástico, o chefe rodeado de puxa-sacos que riam de suas piadas.
Como no ano anterior, procurou um lugar perto dos músicos, que preparavam o som. A cantora era baixinha, de cabelos curtos, um pouco parecida com a Adriana Calcanhoto. Não era uma banda grande, só teclado, baixo, guitarra e a moça. Ela olhou para ele e deu uma piscadinha, mas nada de sorriso. Ficou em dúvida “- será que está me paquerando?” Levantou-se animado, mas então reparou que ela olhou para o rapaz do baixo e tome outra piscada. Viu decepcionado que era um cacoete, mas já havia levantado e tinha que disfarçar, com a lógica torta dos tímidos, que sempre acham que todo mundo está olhando para ele. Seguiu em frente, desviando das armadilhas de bela Marisa, aqui um grande cachorro de porcelana, ali um velho mumificado, que bem poderia estar vivo, sentado em uma cadeira de diretor de filme americano. Sem perceber, estava se dirigindo para a porta de entrada, quando ela foi aberta e um vento forte praticamente empurrou um grupo de convidados que chegavam. Como se fosse mágica, todos pararam de conversar. Era ela, a morena, rodeada de homens de preto. Alta, olhos verdes, pela dourada de sol, boca escarlate de dentes perfeitos.  Ela vinha na sua direção e parecia que ia passar por cima dele, ela e sua comitiva, mas parou a 10 centímetros de seu rosto e disse: “-Dá licença, rapazinho?”
Ele quase desmaiou de decepção. Então esse era o seu grande momento, e ela nem parecia reconhecê-lo. Afastou-se para o lado antes que o segurança nº 1 lhe pisasse o pescoço, enquanto os nº 2 e 3 avançavam para a platéia que havia se formado e abriam caminho para deusa. O chefe parou de contar piada e levantou-se sério. Ela era bem mais alta que ele. Abraçou-o e beijou-lhe a careca, deixando uma grande marca de batom. Ele pareceu derreter. Nisso a banda começou a tocar e todos foram cuidar de sua vida.
Ele ainda estava tonto pela presença dela, tentando lembrar de alguma coisa multo sensual que aquele perfume lhe trazia. Rapazinho. Nem parecia a mesma, tão simpática, tentando ajudá-lo a levantar.
Um garçom passou com a bandeja repleta de coisas exóticas. Enfiou a mão num abacaxi com canudinho e guarda-sol de papel. “-Cuidado” – disse-lhe o grilo falante em sua cabeça, mas ele deu-lhe uma chinelada imaginária e tocou em frente.  Havia uma cadeira sobrando no canto onde estivera sentado antes. Alguns pares dançavam e ele procurou não tropeçar em nada até chegar ao lugar. Conhecia o grupo de pessoas que estavam naquela mesa, entre eles o Maneco. Ele o olhava de um jeito curioso.
-Então, é ela ou não é?
-É. Mas que é que adianta? Nem me reconheceu.
-Você é um homem morto, cara, e acho melhor nem falar comigo.
-Que é isso, meu, você anda lendo muito “agá que”. Acha que se o homem soubesse alguma coisa a Marisa ia me convidar? Além do mais, o que há pra saber? Nada! Se nem eu, que fui protagonista, sei da coisa toda...
-Se você pensa que não tem nada, porque não vai lá e pergunta pra ela?
-Quer saber? Eu vou mesmo.
-Não faz isso, meu!- o Maneco ficou branco e tentou segurá-lo, mas ele já tinha decidido.
Um garçom vinha rodando uma bandeja de coquetéis coloridos acima de sua cabeça. Apanhou o mais bonito, um copo gigantesco com um líquido vermelho e bolas de gelo azul e dirigiu-se à mesa da morena, que estava naquele momento sozinha.
-Olha o que eu trouxe para você! -ele disse candidamente, procurando parecer o menos canastrão possível.
Ela sorriu e era como se todas as luzes da cidade tivessem se acendido.
-Ora, ora, se não é o senhor bebedeira querendo começar tudo de novo!
-Então você se lembra de mim? Por que fingiu que não me conhecia?
-Você está louco? Não sabe que meu marido está aqui na festa hoje? E que os dobermann's dele estão espalhados por aí, doidinhos pra pegar um cara feito você?
-Não, não sei nada disso. Que tal me contar?
-Muito bem. Dá pra perceber que você não lembra mesmo o que andou fazendo. No ano passado, você caiu por cima de mim bem aqui no gramado. Os seguranças te pegaram e jogaram lá fora. E fim.
-Só isso?
-Só. Foi muito decepcionante. Eu queria me divertir um pouco, a festa estava muito chata. Claro que eles iam te massacrar depois, mas antes eu esperava que a gente se entendesse um pouco, percebe?
Credo! Então era assim?
-E você ia deixar que eles...
-Seria uma pena, mas eu não posso evitar, meu marido não ia admitir que alguém assim continuasse, vamos dizer, existindo, entende?
-Mas e com você, ele não faz nada?
-Claro que não. Ele me adora.
Ele nem quis saber mais. Levantou e procurou afastar-se antes que os homens de preto percebessem. Que criatura sem coração era aquela morena! Não valia arriscar o pescoço. Saiu dali, cismando, desviando dos convidados e das mesas, achando mesmo que a noite estava perdida, quando uma mão macia segurou seu braço. Virou-se e sentiu o perfume, Obsession, e os olhos verdes da Marisa que o fitavam, divertidos.
-Onde o moço pensa que vai?
-Marisa! Como você está linda!
-Achei que você não ia notar. Então, já lembrou do ano passado?
-Que esperança! Mas já achei quem me contasse e queria agradecer de novo por você ter me convidado, mesmo depois do vexame.
-Pra mim não houve vexame. Só percebi que você não se lembrava de nada no trabalho. Eu mesma estava me sentindo mal, afinal eu era sua supervisora. Providenciei a transferência e fiquei esperando que você resolvesse se aproximar, mas como não aconteceu, decidi dar uma força pro destino. Repetindo o convite, claro.
 Então era ela, não a morena. O perfume era o mesmo, mas aí paravam as semelhanças. Percebeu que Marisa era um poucochinho mais baixo que ele, que tinha um sorriso lindo, que seus olhos verdes eram mais acesos que os da outra. Ela o levou pela mão até a cozinha, onde havia uma infinita gama de pratos dourados de todo tipo de carnes, reinando absoluto sobre todos um imenso peru rodeado de abacaxi. Era, com certeza, o paraíso.
-Você não é vegetariana?
-Eu? Absolutamente! Tenho que dar essa festa ridícula todo ano, porque a mulher do chefe não quer bagunça na casa dela. Eles pagam a festa, então não me importo, mas faço a minha aqui na cozinha, junto com os garçons.
-E quem me levou pra casa o ano passado?
-Fui eu. Que pena que você não lembra, porque foi muito divertido. Você estava lá fora, no portão, chamando por mim, cantando uma música, como era mesmo “Ela tem uma arma...” Quando começou a tirar a roupa eu achei que era demais e...
-O que? Eu tirei a roupa?
-Tirou, ficou pelado, balançando tudo, enquanto tocava uma guitarra imaginária, então...
-Para, para. Desisto. Não quero mesmo saber mais.

Ela estava tão perto, a boca a dois centímetros da sua. Nisso as luzes se apagaram e os fogos coloriram o céu. O Rio saudava o beijo ou o ano novo? Definitivamente, era o melhor “reveillon” da sua vida!

quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Viajantes


Numa daquelas noites em que a gente não consegue dormir e que um desassossego invade o coração, causando o impulso de levantar, abrir a janela e contemplar a noite escura, ou descer pelas escadas, abrir a porta da rua e sair andando até encontrar uma taverna aberta, com barulho suficiente para atordoar a alma, ouvi, entre uma caneca e outra de cerveja, a história de um homem que me causou profunda estranheza, em parte pela sua aparência de morto, em parte pelo inusitado do tema. Essa é a história que passo a narrar, e que fica a seu critério levá-la em conta, quando for viajar para qualquer lugar que não conheça e que não seja você a pessoa que escolheu o destino da viagem.
“Eu me chamo Pietro Bonarve – disse ele -e nasci na Baviera, numa aldeia de nome Markbreit. Trabalhava como meeiro de um senhor, dono de muitas vinhas na aldeia, um homem mesquinho e que não tinha piedade quando as colheitas eram magras. Nunca fui casado, pois a solidão das terras de vinha e o serviço pesado da plantação e colheita não atraiam as mulheres da aldeia. Um dia bateu à porta da minha casa uma mulher estranha, em trajes inusitados, que me pedia água e pouso. Era uma criatura bela, de voz pausada. Vestia calças justas como os nobres varões da capital, Munique. Deixei que ela entrasse, que comesse da minha comida e, por fim, instalei-a em minha cama e fui dormir no celeiro. Quando o dia amanheceu, encontrei a casa limpa e o fogo aceso. Ela havia feito uns pães com a farinha e os ovos que minha mãe me mandara no começo do mês. Fiquei muito feliz de comer os pães e vinho antes de sair para trabalhar, mas não vi a mulher em canto algum da casa. Na volta do trabalho fiquei convencido de que ela se fora.
No dia seguinte, aconteceu a mesma coisa, só que dessa vez uma outra visitante, com trajes coloridos e cabelos soltos, sorridente e encantadora, me pediu que a abrigasse aquela noite, pois seguia uma viagem “no tempo”.  Embora não tenha entendido o seu destino, deixei que ela ficasse no mesmo local da anterior e fui dormir de novo na palha do celeiro. Pela manhã, a mesa estava posta com leite quente e comidas estranhas, que eu nunca tinha visto, uns bocados crocantes que se esfarelavam ao toque, com um sabor intenso de toicinho do fumeiro. Mas da moça não havia sinal na casa e nem na aldeia, para onde fui em busca das duas desconhecidas.
Não soube mais nada e a história ainda me intrigava. Na aldeia fui alvo de risadas e todos acreditavam que andei tomando o vinho mais do que devia e vi coisas que não existiam. Houve até quem mencionasse que eu estava sob o poder de alguma bruxa ou do próprio demônio.
Um mês depois, recebi a visita de um cavalheiro vestido de preto, com sobrepeliz de lã que lhe ia até a metade do corpo. Usava estranhas argolas na altura dos olhos, cobertas de vidro, e trazia uma bagagem de couro, que abriu para me mostrar o conteúdo. Havia nela apetrechos feitos de metal e vidro de várias formas, que emitiam luzes azuladas, além de uma muda de roupa leve e livros de um material que ainda não vi serem feitos por aqui. Pediu-me pouso em uma linguagem enrolada, com alguns termos germânicos que ele procurava em um dos seus livros. Eu consenti, mas fiquei temeroso de que estivesse sendo testado pela inquisição. Naquela noite trouxe um pouco da palha para perto do fogo da cozinha e decidi esperar a noite toda acordado, para ver o que acontecia na casa. Se estava sendo alvo de bruxas e feitiçaria, precisava avisar o padre da aldeia. Abri a porta do quarto e vi que meu hóspede dormia a sono solto, com a boca aberta e roncando, enquanto aqueles apetrechos sobre a mesa emitiam ruídos e luzes. Nem bem o dia amanhecia e ele já estava pronto, os pertences acomodados de novo na bagagem de couro. Foi à cozinha e com água quente preparou um líquido negro na minha caneca de vinho, que exalava um perfume suave de erva, semelhante às poções de chá que minha mãe me preparava quando eu adoecia. Ele me falou, consultando o livro grosso com visível dificuldade, que estava de partida. Perguntei-lhe se conhecia as mulheres que também me visitaram e ele ficou olhando, sem entender o que eu dizia. Por fim, foi para o pátio das galinhas e olhou para cima, com a mão aparando a luz do sol. Eu fiz o mesmo e, para o meu espanto, uma grande carruagem de fogo e metal se aproximou da casa e pousou, como um inferno de barulho e calor. A porta se abriu e uma escada feita de metal branco foi lançada para fora em passes de artes mágicas, por onde subiu o cavalheiro, que me acenou da porta antes de sumir com a carruagem num pé de vento. Fiquei doente por um mês e se não fosse minha querida mãe vir da aldeia para cuidar de mim, teria morrido sozinho. Não contei a ninguém de Markbreit sobre isso. Sai da aldeia depois que me curei e nunca mais voltei ali. Tenho viajado pelo mundo todo atrás de alguém que possa me explicar o mistério dos visitantes. Você saberia me dizer?”

Achei, depois de ouvir o relato do aldeão, que ele estava embriagado pela cerveja escura e forte servida na taverna. Ou que havia enlouquecido de solidão na sua plantação de uvas. Voltei para casa devagar, pensando naquela história louca, quando fui abordado por uma linda mulher em trajes masculinos e de cabelos curtos, que me perguntou o nome da cidade, pois precisava corrigir sua rota. Foi assim que decidi acompanhá-la e vim parar aqui, com vocês, no que dizem ser o século vinte e um, neste lugar cheio de médicos e enfermeiras, que me entopem de comprimidos e que não acreditam em viagens pelo tempo. Quanto à mulher, voltou para o seu tempo, não sem antes prometer me levar para conhecer sua família, nas próximas férias.