quinta-feira, 8 de abril de 2010




Aprenderia a tocar bandoneón, claro.
Seu projeto de vida era um bandoneón velho, platino, passional.
Seria um botequim miserável. Ela estaria na platéia, indefinida,
submersa na fumaça azulada, escondida a média luz.
Somente seus olhos oceânicos seriam visíveis.
Deles viria a luz necessária, o sopro de ar marítimo.
Navegaria neles o seu tango e os acordes seriam como acordes rajadas de vento.
Ela estaria no seu peito e na sua melodia bêbada.
Sua música marginal incomodaria as normalidades.
Aprenderia a tocar bandoneón e ela seria a dor infinita, o sangue sujando os punhais.
Mas ela seria, siempre, a flor solitária e definitiva.
Seria a estrela distante e grave.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Ele. Ela





Ele

Claro, é o sol vazando a cortina de filó. Vejo Lola tirando a roupa e seu corpo enxuto parece feito para o flamengo. Linda. Suas pulseiras dançam do punho ao antebraço a cada movimento das mãos, executando a trilha sonora para a encenação que ela faz diante do espelho, o vestido vermelho seguro pela cintura e apertado contra o peito. A cama está cheia de vestidos rejeitados. Sei que ela quer impressionar seu novo amor, o tal pintor que estréia a exposição para a qual estamos indo.

Nosso antigo quarto não tem mais nada meu. Sobre a bancada da janela muitas fotos, nenhuma minha. Todas as minhas roupas estão no quarto do nosso filho, agora que ele mora sozinho.

Um cansaço enorme invade meu corpo e penso que poderia me estender naquele pequeno espaço que sobrou sobre a cama e dormir para sempre. Meu paletó amarrotado vai fazê-la ficar furiosa. Não posso mais encará-la. O copo de uísque já está vazio pela terceira vez e o gelo é apenas um casca fina que desaparece rápido enquanto encho o copo.

Lola se volta para mim , rodando o vestido, e as pulseiras tornam a tilintar. Seus olhos estão brincando de gato e rato, como costuma fazer quando quer me provocar. Eu só penso que não agüento mais o som dessas pulseiras. O álcool aumenta o sono e bocejo sem tentar disfarçar, mas não tenho coragem de dizer-lhe que não quero ir. Que não quero mais participar dessa comédia que é a nossa vida. Que não vou mais tolerar aquele pintorzinho medíocre nem aquela gente falando besteiras sobre arte.

Saio do quarto e desço devagar as escadas, enquanto ela se troca. A porta está tão perto que não resisto, e o ar frio da tarde que cai me dá o fio de ânimo que estava precisando. Atravesso a calçada, a rua, a segunda quadra e de repente meu passo é apressado, estou correndo, estou livre dela para sempre.


Ela


Contemplo os retratos sobre a bancada da janela, na penumbra do quarto. A cortina de filó não impede o sol, que entra no quarto mas não ilumina, agora que o dia já vai terminando. Num dos retratos sou a noiva de branco, um sorriso de anúncio de dentifrício e flores de laranjeira na grinalda. Noutro uma adolescente de cabelos duros de laquê e maquiagem carregada, o mesmo sorriso de muitos dentes, com a clássica pose das dançarinas de flamengo, um braço estendido, o outro para trás, o rosto erguido. Noutra bebês gorduchos no colo, rosto sério, sem sorriso. Crianças. Adolescentes.

Em cima da cama, todos os vestidos. Procuro conter a alegria que me dá experimentá-los em frente ao espelho, rodando e ensaiando os passos da minha dança. Ele me olha através do copo e vejo que não quer sair comigo. Já está bêbado e ainda não são seis horas. Ele sabe que Rodrigo e seu charme, seus quadros, sua paixão, me esperam no salão azul do River Place. Quero um vestido que permita o xale espanhol de minha mãe, tecido em seda fina, como uma teia de aranha. Meus braceletes o irritam, Rodrigo o irrita, os vestidos sobre a cama o irritam. Esta é a minha hora. Olho-o com um sorriso que certamente o irritará. Como uma lagarta na crisálida me deixei ficar todos esses anos, me alimentando dos sonhos aprisionados num álbum de fotografias. Parecia impossível que as asas se desdobrassem e ganhassem o espaço. Nem ele nem eu acreditamos e no entanto alço vôo. Um vôo seguro. Ontem voltei a dançar. As batidas do saltos no palco, as castanholas e toda a paixão explodiram em aplausos. Depois o camarim repleto de flores, luzes, gente, Rodrigo.

Posso ver nos seus olhos que está cansado e meu sorriso é a prova de que não ligo mais. Encerro com esse sorriso os anos de reverência aos seus discos de jazz, ao seu humor fino, aos seus flertes descarados. Estou linda, segurando o vestido vermelho em frente ao espelho e as estrelas nos meus olhos iluminam o quarto, que começa a escurecer com o fim da tarde.

domingo, 4 de abril de 2010


Paulo Roberto Cequinel

Seu corpo, terra prometida, terra fértil: na rua suja o anjo promete, eu prometo.
Na rua suja do meu verso o anjo se mostra, voz aberta para o lixo organizado e ocidental.
O tempo apressa e a rua suja do meu tempo se fecha para obras de recuperação.
Na causa limpa do meu pranto o vento caminha livre.
E o sangue se derrama na rua suja do meu medo.
Na rua suja dos meus vícios meu verso se assusta, o meu passo apressa o tempo,
o meu tempo se vende, se veste de concreto a flor sintética,
choram pelo passado esquecido na chuva.
Na chuva azul do meu pranto o esquecimento aquece o cimento morto.
O cimento sujo com meu sangue vai renascer menos duro, mais sentimento.
Na rua suja do meu tempo há o homem destruído.
Na rua suja do meu tempo há o templo construído e aberto para sua fé.
Há também o meu segredo.
Na rua suja pelo tempo, os pássaros se apressam e ganham o medo.
Mas, na memória dos seus beijos, nos cobertores dos seus braços,
no descanso do seu corpo, o tempo perde o sentido, e perde o jogo.
Na metade do meu tempo há o poema esquecido, há a lágrima.
Na mentira de quem feriu o poeta bêbado, o verso limpo e a água calma, há o cimento.
Na pequena porta se abrindo para o norte é mortal o dia.
Somos seres noturnos de vôos cegos e infinitos.