sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Arlequim Esfarrapado



A chave ainda é a mesma que seu avô comprou com as dobradiças e fechadura, quando construiu o sobrado. Nunca quis mudar para modelo mais novo, nem mesmo depois do arrombamento no ano da neve, quando a casa foi assaltada enquanto todos saiam para comemorar aquele inverno inusitado. É uma chave cheia de detalhes, grande e brilhante pelo uso. Lembrava dela pendurada num prego atrás da porta, quando a avó trancava tudo e fechava as janelas e os três iam para a cozinha, para tomar a sopa grossa de beterraba com nata e carne de porco. Ela era uma menina obediente, fazia tudo que a avó mandava, inclusive tomar a sopa que detestava. Os outros netos e netas moravam com os pais, tinham a sua própria casa, seus brinquedos e roupas, que depois de algum uso apareciam no seu armário. Remendadas e lavadas pela avó, as roupas dos primos acabavam por ser o que ela vestia para ir à escola, à missa, à feira. Suas pernas compridas ficavam à mostra, porque era a mais velha de todos, por isso a avó muitas vezes juntava pedaços de roupas diferentes na máquina de costura e acabava que suas roupas lembravam as fantasias de arlequim, feitas de retalhos coloridos tão ao gosto da colônia polonesa.
Na escola passou a ser considerada uma menina solitária e excêntrica. Nem na adolescência libertou-se dessa definição que lhe havia sido atribuída pelas meninas menos bonitas, mas mais populares. E por se prestar a estados de melancolia e insistir no estilo de arlequim mesmo depois da morte da avó, acabou consolidando a fama.
Agora, a chave gira com facilidade, abrindo a casa habitada por sombras e pelo silêncio. O avô havia sido enterrado naquela tarde, depois da agonia de alguns anos, pelos quais foi perdendo sua identidade, e no final já não era aquele homem grande e cheio de autoridade que havia substituído seu pai quando ela ainda era uma garotinha medrosa, que precisava de ajuda para subir as escadas e até para alcançar a cama.
Ele lhe havia deixado o sobrado. Todos os tios e primos concordavam que o sobrado devia ficar para ela, de modos que agora precisava entrar e tomar posse da sua herança. Junto com o sobrado vinham todas as lembranças, atulhadas nos vãos da escada, no cheiro bolorento dos armários manchados, nas cortinas tristes de brocado desbotado.
Seu quarto, visto pelos olhos da menina crescida, era acanhado, bem menor do que lembrava, e a cama de madeira construída pelo avô, que lhe parecia imensa, era apenas uma caminha de menina, pintada de azul, grossa das muitas camadas renovadas todo ano antes do natal, quando vinham os filhos e netos de diferentes partes do estado, com suas bagagens cheias de novidades que usavam nas festas e de coisas velhas que acabavam ficando para ela.
Não eram dados à leitura que não fosse a bíblia e o jornal diário, que o velho comprava na banca embaixo de seu escritório. Por isso, ela freqüentava a biblioteca da escola com muito mais freqüência que as outras crianças, devorando os livros de fadas na hora do recreio. A falta de um rádio ou uma vitrola havia isolado sua infância da alegria de sons e de danças, ou do colorido das festas comuns na colônia. Mas o sobrado ficava bem no centro da cidade, quase em frente à praça, para onde todos convergiam nas noites de sábado, o que lhe dava a oportunidade de ver as pessoas felizes que gozavam o dia de descanso. Um coreto abrigava a bandinha da força pública que arrancava aplausos do público infantil. Era o dia em que se emplumava de seus pertences coloridos e burlava a vigilância não tão atenta da avó, para se empoleirar na janela do sótão, de onde tinha uma vista privilegiada da praça.
Sobe a escada estreita e vê como aquele sótão da sua infância é pequeno, atravancado de móveis descascados. A visão da praça, onde alguns pombos catam insetos e desocupados dormem nos bancos lhe causa espanto. O lixo ocupa boa parte do gramado. O coreto está em ruínas. Do outro lado morava Alicinha, aquela menina desbotada que costumava atravessar a praça para brincar com ela no sótão, com todas as bonecas que a avó reformava, juntando pernas e braços diferentes e costurando com capricho, inventando roupas novas dos retalhos coloridos. Suas bonecas tinham os mesmos vestidos que ela. Alicinha adorava vestir seus vestidos e desfilar pelo quarto, imitando as modelos que via na TV. Ela mesma pouco entendia desses programas. O avô não permitia ligar a TV antes das oito da noite, quando ele via o jornal. A avó assistia um capítulo da novela em seguida e depois o aparelho era desligado, o silêncio se instalava no sobrado e só lhes restava dormir.
Também do outro lado da praça ficava o escritório de contabilidade onde o avô trabalhou até adoecer. Ele era o proprietário e, por isso mesmo, dedicava todo o seu tempo ao trabalho. Ela chegava da escola ao mesmo tempo que ele, na hora do almoço. A avó botava a mesa em silêncio, rezavam e comiam. Ajudava com a louça, enquanto o avô abria o jornal e o lia ali mesmo, na cozinha, página por página, metodicamente, dobrando cada coluna e por fim eram guardadas no caixão de lenha para avivar o fogo. Ela estava proibida de ler, porque as notícias não serviam para crianças. Por isso mesmo, quando o avô saia, devorava o jornal escondida no sótão, dobrando da mesma forma e recolocando-o com cuidado no mesmo lugar. A avó sabia mas nunca deu a entender, porque não queria ser sua cúmplice.
Tinham as duas muito medo do avô. Era dado a iras incomuns quando as coisas não aconteciam como ele queria. A porta do seu quarto devia estar sempre aberta para as visitas noturnas. A avó não podia estar acordada nessa hora e seus soluços eram abafados pela pesada coberta de lã de carneiro. Ela mesma escondia seu choro, mordendo a manga do pijama ou a ponta do travesseiro, porque da primeira vez gritou muito e o avô bateu-lhe com muita força no rosto e nos braços. No dia seguinte o sangue seco no rosto e nos lençóis foi lavado pela avó e ela não foi à escola até que as manchas de corpo sumissem.
Agora, a cama coberta por uma colcha de retalhos lhe parece tão pequena! Reconhece um e outro pedaço de pano e finalmente chora a infância roubada. O pó suspenso no ar e iluminado pelos raios do sol lhe lembra a poeirinha que a fada Sininho jogava nos meninos perdidos para que eles voassem. Pensa se a essa hora o corpo do avô estará sendo devorado pela terra, mas sabe que isso vai demorar a acontecer.
A casa está em péssimo estado, os lambrequins descascados, alguns podres, dando a aparência de uma boca banguela. Precisa mandar pintar e restaurar, a madeira é imbuia, o que a torna mais valorizada. Vai contratar um bom pintor da colônia, um carpinteiro caprichoso. Esse homem vai raspar e tirar todas as camadas de tinta acumuladas e depois ela vai escolher suas cores extravagantes, polonesas, e todas as pessoas da praça olharão para ela. Não deixará que se esqueçam . Não poderão ignorá-la, como fizeram sempre, fingindo não saber. Ela mesma os vigiará da janela do sótão, e empoleirada, os verá abaixarem os olhos e se esconderem dentro das suas casas, das suas igrejas, dos seus túmulos, de suas mesquinhas vidas, até o fim.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

A Letreira

A Letreira

Sempre fui fiel

A cadeia da cidade, esburacada nas paredes pelas muitas tentativas de fuga, mostrava as pedras da construção açoriana, antiga e forte. Na verdade, as tentativas eram prosaicas, feitas com garfos e colheres usados como ferramentas, e só faziam pequenos buracos no reboco, deixando à mostra as pedras, cimento e areia, mas sem conseguir abalar a estrutura. Por isso consideravam a cadeia local como muito segura e a superlotação da única cela coletiva era justificada pela administração central como “um pequeno problema” diante da demanda estadual por vagas no presídio.
Uns tantos presos se amontoavam na cela em volta de uma cuia de chimarrão, que a carcereira havia preparado com cuidado para não entupir a bomba. O rapazinho, muito novo e com a cara cheia de espinhas, contava animado sua façanha. Junto com a mãe-de-santo local, haviam comprado o prostíbulo e arrebanhado algumas namoradas que ele se incumbia de recrutar, meninas das colônias, polacas cheias de fogo e amor para dar. O menino era apenas um projeto de cafetão, não tinha experiência e deixou-se enganar por algumas menores, que estavam sendo pagas pela concorrência para tirar de campo os dois, novos no ramo. A mãe-de-santo foi presa na cela ao lado, mas logo foi solta por um dos freqüentadores do terreiro, advogado e vereador. Quanto ao rapazinho, estava curtindo a nova experiência, animado com a platéia carente de novidades.
Na cela onde Mãe Cidinha do Afoxé havia estado se encontrava agora uma mulher estranha, cheia de marcas no corpo e no rosto. Tinha a fisionomia atormentada de louca. Havia matado o marido e se recusava a conversar com o advogado, o mesmo que havia soltado a mãe de santo e que a família da moça contratou, levados todos pela fama do causídico, que corria a cidade, e que dizia ter o tal um trato com o dianho, pois não perdia suas causas, fosse o cliente culpado ou inocente.
A moça era culpada mesmo, pois a encontraram junto ao corpo do marido segurando firme a arma do crime, uma faca bem amolada que a vítima usava para preparar churrascos, carneando boi e porco. Era mulher pequena e franzina, como podia ter dominado aquele polaco grande, que tinha fama de valente e enfrentava touro bravo no pasto?
O advogado se esforçava para ter paciência, mas a moça, obstinada, nem o olhava, segurando com as duas mãos a cabeça e olhando o vazio, enquanto o corpo balançava ligeiramente, para frente e para tras, como se estivesse em um barco atracado e embalado por ondas batendo no casco. Para longe parecia ter partido seu juízo. Estava já desistindo, mas lembrava sempre que a moça era filha de gente influente da cidade, pai e mãe de berço, donos de gado e pasto. Os cabelos desgrenhados e esse olhar vazio lembravam a Ofélia da tragédia grega. Ele estava intrigado com crime. Sabia que o polaco era violento com os trabalhadores, tinha fama de valentão. Casou com a filha do patrão contra a vontade da família, mas a moça foi tomada de grande arrebatamento e ameaçou matar-se se ele não fosse seu. Filha única, acabou convencendo a família, que nunca lhe enfrentou os ataques de fúria quando contrariada. Estavam casados fazia alguns anos. Não tinham filhos. Moravam nas terras mais isoladas, bem perto da fronteira com Santa Catarina, já na descida da serra, terras de grandes precipícios, pouco valorizadas para criar gado. O pai castigava assim o intruso, do qual queria distância. Diziam os poucos vizinhos que ouviam pela noite gritos horríveis de almas agoniadas, e que todo mundo se benzia quando passava pela casa grande, mas o certo é que o patrão transformou a terra, plantando frutas, criando porcos, e prosperou, contra o vento e a vontade de todos.
Não era mulherengo. Ninguém sabia os motivos que levaram a dona a dar fim ao seu grande amor e era preciso arrancar a verdade daquela criatura ou inventar uma boa história para construir a defesa e assim não ter sua primeira derrota. Precisava manter a fama, que, mais que os honorários de vereador, garantia sua boa vida.
Os ouvintes do rapazinho já se haviam cansado de tanta lorota e agora desfaziam a roda de chimarrão, se arrumando pelos cantos e nos colchões espalhados na cela. Pelas grades observavam as tentativas do advogado, enquanto a mulher continuava olhando para o vazio.
Ninguém sabia do delegado, homem cuja presença na delegacia era tão rara que poucos presos já tinham tido a oportunidade de conhecê-lo. Como as transferências para o presídio mais próximo não eram tão freqüentes, alguns presos já estavam na cadeia há uns pares de anos, e haviam conhecido alguns dos muitos delegados que apareciam de tempos em tempos, mas que rapidinho pediam transferência da cidade para outros lugares mais prósperos. O atual tinha comparecido para o trabalho tão pouco que nem os carcereiros e soldados sabiam de seu paradeiro. Um crime de morte era novidade maior que as histórias do rapaz das espinhas e era raro na cadeia. Por isso ninguém estranhou quando o delegado em pessoa adentrou o local, com sua cara de poucos amigos, usada para impressionar a platéia e que causava sempre o efeito desejado.
O advogado animou-se, porque a ré era primária, estava em estado de choque, não oferecia perigo a ninguém, portanto um mandado de soltura estava a caminho, ele precisava providenciar, o delegado devia entender que “... a minha cliente é inocente, não devia estar num local como esse, a menina é formada em educação física, portanto tem privilégios.”
O delegado mau olhou o sujeito, entretido em ler os relatórios que a carcereira havia preparado, na falta de um secretário, entre a limpeza do prédio e o preparo do almoço dos presos. A moça, como já havia notado, era muito prendada. Não podia indicá-la para uma promoção, pois perderia a mão de obra qualificada. Olhou o advogado com um ar superior de quem sabe que será transferido em breve para a capital e disse, sem tirar os olhos do papel:
-Deixe de histórias, Dr. Rialdir, que meus homens já mandaram as evidências para a perícia na capital. A dona está encrencada, com os diabos! Melhor aconselhar a moça a dizer tudo, assim facilita a investigação e quanto mais cedo eu acabar, mais cedo ela sai.
O advogado não se deu por achado, sabia também fazer tipo e gostava desse teatro.
-Pois eu estou indo agora mesmo ver a juíza. Vou pedir que liberem a minha cliente e o senhor sabe que isso eu consigo.
Enquanto isso, o rapazinho havia sossegado e só agora se dava conta de que havia uma história maior que a sua nas rodas de conversa da cela. Olhou bem firme para a cela em frente, onde a Ofélia continuava na mesma posição, e reconheceu a moça que freqüentava a casa de mulheres que havia comprado, justamente a mais atirada e a que mais lucrava nas noites de esbórnia. Cutucou o companheiro ao lado e perguntou o que ela fazia ali, sem contar de onde a conhecia. E por uma grande coincidência, o menino fanfarrão tinha a ponta do barbante que ia ser desenrolado, até que se chegasse aos motivos do crime.
A filha única do dono de terra e gado era useira e vezeira da casa de mulheres. De noite saia com o marido, ia dar-se aos prazeres dos homens de passagem, enquanto o seu próprio ficava observando, escondido num canto do quarto. Era a única forma com que o homem sentia prazer.
Chegavam de madrugada, mas as lembranças da noite o atormentavam. Ao mesmo tempo em que queria, rejeitava a mulher. Vingava-se dela e destilava seu ciúme batendo-lhe. Seus gritos eram ouvidos longe. O que ele não sabia é que a mulher não gostava de cumprir suas fantasias e a cada dia mais e mais lhe tinha ódio. Na noite anterior estava preparada, já havia deixado a faca ao alcance da mão. Estava cheia de apanhar, seu corpo era um mapa de violência.
Foi dizendo tudo ao delegado, aos trancos, enquanto o advogado estava ausente, preparando o pedido de soltura. Contou o quanto havia apanhado, como ele a forçava, como não podia contar tudo à família, os filhos que havia abortado. Uma história e tanto, que deu no jornal das oito, que de tão horrível ninguém conseguiu piorar, e que passou a ser contada por toda a cidade, por alguns anos, e que consolidou a carreira do delegado, transferido ligeirinho, e a fama do advogado, que conseguiu a absolvição, pelo tribunal do júri, da pobre mulher brutalizada. O mais estranho é que ela alegava não ter tido outro homem em seu coração e que tudo o que fez foi por amor.

domingo, 5 de dezembro de 2010

Amigas





Clarice era, ela mesma, mais amarga que todos os remédios para o fígado. Juliana a adorava, embora o mau humor da amiga obrigasse a evitar convites. O marido mal a suportava e não a queria em casa. A amizade vinha de infância, não viviam uma sem a outra. Clarice, magra, ferina, rabugenta e brilhante, um sucesso na empresa multinacional. ”-Nunca vou me casar”. Já Juliana fechou o consultório de psicologia para atender à família, que aumentava todos os anos. Era feliz tratando as crianças e o marido, mantendo-os confortáveis e alimentados, as contas em ordem, o mundo sob controle.
Por causa disso, pouco era o tempo para ela. E como Clarice fazia parte das coisas e pessoas que aconteciam do lado de fora da sua casa, foi esquecendo de convidá-la para o chá uma vez por semana, depois para o aniversário das crianças, para o seu próprio , as férias na cidade onde haviam nascido, por fim o Natal.
Mauro, o marido, parecia feliz com isso. “-Que bom ela não ter vindo, eu já não tinha mais assunto!” ou “-Como duas pessoas tão diferentes podem ser amigas assim?”.
Lia nos jornais notícias sobre a carreira em ascensão da amiga. Trocavam telefonemas apressados: ”-Venha me ver” e “-Hoje não posso”. Foi ficando triste com a distância, sentindo falta das risadas, da cumplicidade, das conversas inteligentes e instigantes que Clarice provocava.
Um dia, decidiu fazer visita. Mauro viajando, as crianças com a babá, tomou o ônibus na esquina de casa e desceu a duas quadras, comprou “brioches” e “croissants”. Tinha a chave da portaria, haviam morado juntas até o casamento. O prédio antigo, sem elevador , exigia preparo físico. Chegou exausta no fim do terceiro lance da escada, a tempo de ver Clarice e Mauro na porta, num beijo longo de despedida. Distraídos no carinho nem notaram os pãezinhos caídos do pacote, espalhados sem ruído pelo carpete, enquanto Juliana descia rápida, para longe da cena que jamais reconheceria ter presenciado.