A chave ainda é a mesma que seu avô comprou com as dobradiças e fechadura, quando construiu o sobrado. Nunca quis mudar para modelo mais novo, nem mesmo depois do arrombamento no ano da neve, quando a casa foi assaltada enquanto todos saiam para comemorar aquele inverno inusitado. É uma chave cheia de detalhes, grande e brilhante pelo uso. Lembrava dela pendurada num prego atrás da porta, quando a avó trancava tudo e fechava as janelas e os três iam para a cozinha, para tomar a sopa grossa de beterraba com nata e carne de porco. Ela era uma menina obediente, fazia tudo que a avó mandava, inclusive tomar a sopa que detestava. Os outros netos e netas moravam com os pais, tinham a sua própria casa, seus brinquedos e roupas, que depois de algum uso apareciam no seu armário. Remendadas e lavadas pela avó, as roupas dos primos acabavam por ser o que ela vestia para ir à escola, à missa, à feira. Suas pernas compridas ficavam à mostra, porque era a mais velha de todos, por isso a avó muitas vezes juntava pedaços de roupas diferentes na máquina de costura e acabava que suas roupas lembravam as fantasias de arlequim, feitas de retalhos coloridos tão ao gosto da colônia polonesa.
Na escola passou a ser considerada uma menina solitária e excêntrica. Nem na adolescência libertou-se dessa definição que lhe havia sido atribuída pelas meninas menos bonitas, mas mais populares. E por se prestar a estados de melancolia e insistir no estilo de arlequim mesmo depois da morte da avó, acabou consolidando a fama.
Agora, a chave gira com facilidade, abrindo a casa habitada por sombras e pelo silêncio. O avô havia sido enterrado naquela tarde, depois da agonia de alguns anos, pelos quais foi perdendo sua identidade, e no final já não era aquele homem grande e cheio de autoridade que havia substituído seu pai quando ela ainda era uma garotinha medrosa, que precisava de ajuda para subir as escadas e até para alcançar a cama.
Ele lhe havia deixado o sobrado. Todos os tios e primos concordavam que o sobrado devia ficar para ela, de modos que agora precisava entrar e tomar posse da sua herança. Junto com o sobrado vinham todas as lembranças, atulhadas nos vãos da escada, no cheiro bolorento dos armários manchados, nas cortinas tristes de brocado desbotado.
Seu quarto, visto pelos olhos da menina crescida, era acanhado, bem menor do que lembrava, e a cama de madeira construída pelo avô, que lhe parecia imensa, era apenas uma caminha de menina, pintada de azul, grossa das muitas camadas renovadas todo ano antes do natal, quando vinham os filhos e netos de diferentes partes do estado, com suas bagagens cheias de novidades que usavam nas festas e de coisas velhas que acabavam ficando para ela.
Não eram dados à leitura que não fosse a bíblia e o jornal diário, que o velho comprava na banca embaixo de seu escritório. Por isso, ela freqüentava a biblioteca da escola com muito mais freqüência que as outras crianças, devorando os livros de fadas na hora do recreio. A falta de um rádio ou uma vitrola havia isolado sua infância da alegria de sons e de danças, ou do colorido das festas comuns na colônia. Mas o sobrado ficava bem no centro da cidade, quase em frente à praça, para onde todos convergiam nas noites de sábado, o que lhe dava a oportunidade de ver as pessoas felizes que gozavam o dia de descanso. Um coreto abrigava a bandinha da força pública que arrancava aplausos do público infantil. Era o dia em que se emplumava de seus pertences coloridos e burlava a vigilância não tão atenta da avó, para se empoleirar na janela do sótão, de onde tinha uma vista privilegiada da praça.
Sobe a escada estreita e vê como aquele sótão da sua infância é pequeno, atravancado de móveis descascados. A visão da praça, onde alguns pombos catam insetos e desocupados dormem nos bancos lhe causa espanto. O lixo ocupa boa parte do gramado. O coreto está em ruínas. Do outro lado morava Alicinha, aquela menina desbotada que costumava atravessar a praça para brincar com ela no sótão, com todas as bonecas que a avó reformava, juntando pernas e braços diferentes e costurando com capricho, inventando roupas novas dos retalhos coloridos. Suas bonecas tinham os mesmos vestidos que ela. Alicinha adorava vestir seus vestidos e desfilar pelo quarto, imitando as modelos que via na TV. Ela mesma pouco entendia desses programas. O avô não permitia ligar a TV antes das oito da noite, quando ele via o jornal. A avó assistia um capítulo da novela em seguida e depois o aparelho era desligado, o silêncio se instalava no sobrado e só lhes restava dormir.
Também do outro lado da praça ficava o escritório de contabilidade onde o avô trabalhou até adoecer. Ele era o proprietário e, por isso mesmo, dedicava todo o seu tempo ao trabalho. Ela chegava da escola ao mesmo tempo que ele, na hora do almoço. A avó botava a mesa em silêncio, rezavam e comiam. Ajudava com a louça, enquanto o avô abria o jornal e o lia ali mesmo, na cozinha, página por página, metodicamente, dobrando cada coluna e por fim eram guardadas no caixão de lenha para avivar o fogo. Ela estava proibida de ler, porque as notícias não serviam para crianças. Por isso mesmo, quando o avô saia, devorava o jornal escondida no sótão, dobrando da mesma forma e recolocando-o com cuidado no mesmo lugar. A avó sabia mas nunca deu a entender, porque não queria ser sua cúmplice.
Tinham as duas muito medo do avô. Era dado a iras incomuns quando as coisas não aconteciam como ele queria. A porta do seu quarto devia estar sempre aberta para as visitas noturnas. A avó não podia estar acordada nessa hora e seus soluços eram abafados pela pesada coberta de lã de carneiro. Ela mesma escondia seu choro, mordendo a manga do pijama ou a ponta do travesseiro, porque da primeira vez gritou muito e o avô bateu-lhe com muita força no rosto e nos braços. No dia seguinte o sangue seco no rosto e nos lençóis foi lavado pela avó e ela não foi à escola até que as manchas de corpo sumissem.
Agora, a cama coberta por uma colcha de retalhos lhe parece tão pequena! Reconhece um e outro pedaço de pano e finalmente chora a infância roubada. O pó suspenso no ar e iluminado pelos raios do sol lhe lembra a poeirinha que a fada Sininho jogava nos meninos perdidos para que eles voassem. Pensa se a essa hora o corpo do avô estará sendo devorado pela terra, mas sabe que isso vai demorar a acontecer.
A casa está em péssimo estado, os lambrequins descascados, alguns podres, dando a aparência de uma boca banguela. Precisa mandar pintar e restaurar, a madeira é imbuia, o que a torna mais valorizada. Vai contratar um bom pintor da colônia, um carpinteiro caprichoso. Esse homem vai raspar e tirar todas as camadas de tinta acumuladas e depois ela vai escolher suas cores extravagantes, polonesas, e todas as pessoas da praça olharão para ela. Não deixará que se esqueçam . Não poderão ignorá-la, como fizeram sempre, fingindo não saber. Ela mesma os vigiará da janela do sótão, e empoleirada, os verá abaixarem os olhos e se esconderem dentro das suas casas, das suas igrejas, dos seus túmulos, de suas mesquinhas vidas, até o fim.