terça-feira, 18 de dezembro de 2012

O CORVO


      *
      (de Edgar Allan Poe)

    Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
    Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
    E já quase adormecia, ouvi o que parecia
    O som de algúem que batia levemente a meus umbrais.
    "Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.
    É só isto, e nada mais."

    Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,
    E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
    Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
    P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais -
    Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
    Mas sem nome aqui jamais!

    Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
    Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
    Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo,
    "É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
    Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
    É só isto, e nada mais".

    E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
    "Senhor", eu disse, "ou senhora, decerto me desculpais;
    Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
    Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
    Que mal ouvi..." E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.
    Noite, noite e nada mais.

    A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
    Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
    Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
    E a única palavra dita foi um nome cheio de ais -
    Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.
    Isso só e nada mais.

    Para dentro então volvendo, toda a alma em mim ardendo,
    Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
    "Por certo", disse eu, "aquela bulha é na minha janela.
    Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais."
    Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.
    "É o vento, e nada mais."

    Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
    Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
    Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
    Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
    Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
    Foi, pousou, e nada mais.

    E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
    Com o solene decoro de seus ares rituais.
    "Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,
    Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
    Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."
    Disse o corvo, "Nunca mais".

    Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
    Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
    Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
    Que uma ave tenha tido pousada nos meus umbrais,
    Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
    Com o nome "Nunca mais".

    Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
    Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
    Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
    Perdido, murmurei lento, "Amigo, sonhos - mortais
    Todos - todos já se foram. Amanhã também te vais".
    Disse o corvo, "Nunca mais".

    A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
    "Por certo", disse eu, "são estas vozes usuais,
    Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
    Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
    E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais
    Era este "Nunca mais".

    Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
    Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
    E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
    Que qu'ria esta ave agoureia dos maus tempos ancestrais,
    Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
    Com aquele "Nunca mais".

    Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
    À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
    Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
    No veludo onde a luz punha vagas sobras desiguais,
    Naquele veludo onde ela, entre as sobras desiguais,
    Reclinar-se-á nunca mais!

    Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
    Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
    "Maldito!", a mim disse, "deu-te Deus, por anjos concedeu-te
    O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
    O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!"
    Disse o corvo, "Nunca mais".

    "Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
    Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
    A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
    A esta casa de ância e medo, dize a esta alma a quem atrais
    Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!
    Disse o corvo, "Nunca mais".

    "Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
    Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais.
    Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida
    Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
    Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!"
    Disse o corvo, "Nunca mais".

    "Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!", eu disse. "Parte!
    Torna á noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
    Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
    Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
    Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!"
    Disse o corvo, "Nunca mais".

    E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
    No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
    Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
    E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,
    Libertar-se-á... nunca mais!
    Tradução: Fernando Pessoa

Um ano daqueles!

     Cada vez mais fico admirada da qualidade dos últimos anos. Digo qualidade no sentido de que não são mais como os anteriores, quando a gente dizia: "Nossa, voou!" O ano passado não voou, foi aquele da tragédia no litoral, quando a natureza se sacudiu e jogou no chão  suas árvores, suas pedras e as casas construídas na montanha. E daí, as pessoas perderam suas casas e aguardam, desde então, as casas que deveriam ser entregues "no menor prazo possível", construídas com recursos já liberados pelo governo federal e que o o senhor governador do estado do Paraná não repassa para as prefeituras. 

    Este ano foi outro ano que não voou. Foi intenso, ano de eleições, quando partidos e candidatos se engalfinharam para a conquista da prefeitura de uma cidade falida. Eu quero acreditar que a intenção dessa disputa acirrada foi causada pela vontade de mudar a face do município. Moro aqui faz agora 18 anos. Nunca vi uma eleição tão disputada. Participei dela para tentar eleger os candidatos do meu partido, coisa que não conseguimos, por muitos motivos, que não dá para falar agora, porque não dá pra resumir a situação política de Antonina. 

     Mas o que me deixa certa da intensidade dessas últimos anos é outro fenômeno, maior que o  da natureza. Trata-se da Internet e da transformação das relações humanas. Vivi tanto tempo nesta cidade sem conhecer muita gente, isolada pelos afazeres domésticos, a família e as viagens para ver meus filhos,  netos e amigos espalhados pelo Brasil. De repente, a Internet. Parece título de filme e daria um filme bom. Por meio dela conheci pessoas do mundo todo e até de Antonina. Conhecemos a Lia e o Luiz Henrique pela Internet. Conheci os companheiros do partido compartilhando com eles e eles comigo as notícias de nosso interesse. Conheci os preconceitos, a solidariedade, as rivalidades, o romantismo, a religiosidade e a falta dela, campanhas para o bem e para o mal. As fotos de família, as fotos da natureza (lindas fotos do Eduardo Nascimento, da Carolina Bee e do Marcos Maranhão).  Descobri patifarias e conluios. Consegui(mos) um diálogo do nosso bairro (Batel) com a prefeitura da cidade. Eu, que ninguém nunca tinha visto e nem sabiam da existência, passei a trocar caneladas com anônimos do blog do Luiz. Fui tachada de isso e aquilo. E também tachei este ou aquele de coisas. Uma vida impensável nos anos noventa e até no início deste novo século. O ritmo de vida da cidade, antes calmo e madorrento, agora é de grandes vendavais de paixões, com direito a amizades desfeitas, muito choro, padres e pastores a dizer coisas que nunca antes diriam. Boatos e verdades sendo distribuídos grátis em casa, não pelo teletipo nem por cartas anônimas, mas pelo celular e pela tela do computador. As fotos de perfil, devidamente retocadas pelo fabuloso Fotoshop, permitem que a gente tenha uma idade etérea, indefinida. 

    Antonina pós Internet é interessante e viva. Mas também pode ser uma faca no peito. Foram dois anos intensos. Não voaram e, pela primeira vez, posso dizer a todos como passamos este ano. Pena que a maioria das pessoas não esteja interessada, afinal isso já é passado.