quarta-feira, 16 de novembro de 2011

O Menino e a Professora


Sonia Nascimento

João, Catarina, Mariana, Luna, German, Hiago Tiê,
Se conseguirem aquietar essas almas de esquilo e tiverem um tanto de paciência para velhas dores, que nada têm a ver com estes dias, ouçam a história que vou contar, que se passou há muito tempo, numa cidade fria como o vento que sopra do sul.
A PROFESSORA
Era uma mulher pequena, antiga, daquelas mulheres fortes que costumam aparecer nos velhos álbuns de família, de traços firmes e queixo quadrado, tez morena, saudável. Chamava-a o menino “professora”, como a havia chamado o pai do menino e como a chamavam todos da cidade fria. Parecia, e assim todos pensavam, ter estado ali sempre, desde que os primeiros colonos chegaram, atrás de novas terras para o trigo.
Diziam os pais: “Vai à escola, para que te eduque a professora aquela.”
O MENINO
Antes da escola, o menino havia crescido como um potro nas campinas, nadando na sanga, galopando o vento. Era xucro e as maçãs do rosto tinham uma estranha cor de telha, queimadas da geada. E vivia assim, esquecido dos adultos, pois ainda não havia chegado a hora de lhe enfiarem na cabeça a tabuada, que vazava pelas janelas da escola numa cantilena regida pela maestrina. A canção lembrava o badalar do sino da capela: um mais um dois, dois mais um três.
E A HISTÓRIA
Que o menino quis fugir no primeiro dia de aula foi provado, porque o haviam visto a esconder-se dos olhos grandes que o procuravam na entrada. Ia deixando todos os outros passarem à frente. Estava amedrontado. Os adultos diziam, puxando-lhe a orelha: ”Hás de aprender, quando fores à escola” ou “-O que precisas é de educação”. Pobre menino passarinho, a orelha ardia, à mostra, pois o pai o levara ao barbeiro e seus cabelos foram sumindo às picotadas, durante o ritual de iniciação, que constava ainda de banho de tina com sabão, esfregado com bucha, até que sumissem os vestígios da boa terra vermelha. Parecia um arapuã e o medo escurecia a sua alminha de passarinho livre, assim feito você, Tiê.
Como a mulher-professora conseguiu colocá-lo na sala ninguém se lembra ao certo. Conta Clemêncio, o filho do barbeiro, que o laçaram no pasto mais distante, escondido numa touceira de capim limão, todo lanhado e perdido de terra. Conta ainda que o menino foi levado aos piparotes para a aula e que foi amarrado à cadeira nos três primeiros dias.
Não havia um meio de desentocar os miolos de onde eles tinham se escondido e o beabá era uma inescrutável ciência para seus olhos arregalados. Era de ver o empenho que a mulherzinha punha nas cantilenas em seu ouvido. Pasmava o pai que o livrinho cinzento da tabuada estivesse tão gasto e cheio de orelhas e manchas, tanto o menino o usava, de castigo nos cantos da classe. Enquanto isso, as outras crianças tinham recreio: corriam, brincavam de roda, de pega-pega, pulavam corda, se escondiam, comiam seu lanche.
Que luta era desemburrá-lo. Até uma prima de Porto Alegre, de passagem pela colônia para esquecer o namorado, tentou ensinar o guri. A prima desenhava uma letra redonda na pequena lousa, com o giz a chiar: o que é essa bolinha com perninha?- Parecia uma aranha manca. – ele nem sabe o que é um “A”, dizia desconsolada ao pai, que aumentava o castigo, prendendo o menino em casa até nos domingos.
Só não podia faltar à missa. Até lá estava a professora, para quem olhava disfarçando com o livro de hinos da mãe, observando-lhe os óculos de metal dourado, presos à orelha por ganchos negros. Na missa ela lhe parecia outra pessoa, os olhos postos no altar, como se estivesse presa de um transe, o Cristo crucificado derramando seu olhar para ela, para o pai, enfim, toda a platéia que ia visitá-lo aos domingos. Mas o olhar do Cristo também lhe causava arrepios. Parecia condená-lo por não aprender.
De noite tinha pesadelos. As letras dançavam à sua volta. Outras vezes a professora o amarrava e jogava num caldeirão de ferro, a criançada toda em volta batendo palmas e cantando a tabuada.
O primeiro semestre de escola passou depressa para todos os outros, menos para ele. Não conseguiu passar do beabá, a primeira lição da cartilha. O pai estava decepcionado, pois havia sonhado mandá-lo estudar em São Paulo, seria um doutor advogado. E agora, o que fazer com o menino, que parecia destinado à lavoura, como ele, de sol a sol, penando para garantir o feijão e arroz?
Foi durante as férias que se deu o milagre. Fazia, como eu disse, muito frio. Aquele inverno havia trazido a geada negra e a safra de trigo se perdera. O pai vagava pelos campos, os olhos secos, palmilhando o chão à cata de espigas e o desgosto tomava conta da colônia. Os alemães do outro lado do rio haviam mudado para Palmeira das Missões. Muitos estavam desistindo de lutar contra os rigores do tempo e da terra, pois não conseguiam tirar dela o trigo que haviam plantado na velha pátria. “Esse país só dá em quantidade o que a bugrada come. Não é país de cultura cristã.”
Na verdade, o trigo prosperava em outras terras do Rio Grande, dourando campos imensos. No pequeno povoado frio, as safras se entremeavam entre fartas e pífias, causando, no mais, a ruína dos agricultores. Estava nascendo nos arredores uma nova febre, que vinha se alastrando desde a fronteira, cruzando Don Pedrito em direção a São Gabriel, que era a criação do gado. O pai do menino resistia. Ante o sacrilégio de ver seus campos pisados pelos rebanhos dos coureadores preferia a luta. E a luta com a terra estava lhe tirando aos poucos todo o patrimônio que lhe tinha vindo dos avós.
Não bastasse tudo isso, o filho lhe havia saído simples. Ele estava apostando tudo no futuro do guri, seu filho único, pois a mãe não podia mais ter outros e ele não queria outra mulher na sua vida que não fosse ela.
O menino nada sabia de safra e gado. Só o que o atormentava era saber que, findas as férias, teria que recomeçar na escola e acabaria a liberdade. As pastagens e os trigais, separados apenas por cercas, vistas do alto das macieiras coloradas, tornavam sem sentido a guerra entre plantadores e criadores.
Na sua cabeça moravam imagens da pequena mulher, a professora. Nos sonhos, a confundia com bruxas dos contos da avó.
Nesse dia estava muito frio. Chego a sentir a alma devassada pelos ventos dos pampas, a geada craqueando sob os pés, a grama partindo em mil pedacinhos. Ele vagabundeava pelos pastos quando se deu o milagre. O céu estava limpo, o vento havia parado e perto do rio as pedras conservavam o calor do sol.
A professora lá estava, distraída, sentada em uma pedra alta e plana. Tinha nas mãos um livro encadernado de vermelho vivo. Estava completamente afundada na leitura e não percebeu o menino, que rápido se escondeu na base da pedra. Ele tremia de pavor ao pensar que ela ia vê-lo. Tinha um livro na mão e podia muito bem querer que ele juntasse as letras e lesse alto, para o rio e as pedras, como fazia na classe com a cartilha. Mas ela nem o via e nem escutava o rio correndo, as ondinhas que batiam na pedra e molhavam a saia comprida. Ela estava triste e dos seus olhos caia uma cascata de lágrimas, como se alguém a tivesse machucado.
Como era isso? A professora aquela chorava? Então não podia ser tão malvada. As bruxas más não choram. Quando ficam com raiva explodem, mas chorar, de jeito nenhum. Ou sua avó lhe havia mentido?
Teve pena dela, porque agora estava soluçando, como ele mesmo soluçava para não ir à classe. Não resistiu e a chamou:
-Senhora, está doente?
Ela se assustou com a voz do menino. Olhou-o lá de cima e sorriu, como sua mãe fazia quando o punha na cama.
-Rodrigo, que fazes aí? Não te vi chegar.
-Porque está chorando?
-Porque estou lendo uma história muito triste. Sobe aqui, que te conto.
Ele subiu, ressabiado. –Agora ela vai me mandar cantar a tabuada!
Ela o fez sentar ao seu lado e então lhe contou a história mais linda e triste que já havia escutado. Ele foi se deixando ficar e a tarde já ia caindo, quando perceberam que deviam voltar. Ele não acreditava que o livro contivesse aquela história, tantas letrinhas amarradas em palavras sem fim. Ela lhe explicou que havia muitos livros de histórias como aquela, algumas mais alegres, outras de dar medo, outras de aventuras. Que era como viajar por lugares que talvez a gente nunca pudesse estar.
E o menino voltou para casa pensando no que tinha visto. Pediu ao pai que lhe mostrasse a coleção de livros que ele tinha numa estante na sala. Também pediu que ele lhe contasse as histórias de alguns livros muito velhos, trazidos pela avó, escritos em alemão, mas o pai já não se recordava como ler a velha língua, pois era muito criança quando chegara às terras do Brasil.
Parece que alguma coisa aconteceu com os plantadores, uma nova esperança, uma vontade de lutar mais uma vez com a terra. Sementes novas foram trazidas da Europa e distribuídas para todos. Da capital vinham notícias de uma nova semente, desenvolvida nos laboratórios, que podia render mais e resistir às geadas. A vila toda foi contagiada por essa boa nova e os campos voltaram a ser arados, enquanto o gado retrocedia mais para o oeste.
Quando as aulas reiniciaram tudo era diferente. Ainda estava muito frio, mas alguém emprestara um aquecedor de ferro para a escola e toda a colônia havia concertado as tábuas das paredes e pintado de uma cor laranja muito alegre. O telhado havia sido lavado e o chão esfregado. Um novo sino para chamar a gurizada e mais carteiras para as crianças novas. Ele agora já não era o único a não saber ler. Trazia embaixo do braço um lindo livro de capa vermelha que a professora lhe havia dado de presente. E com o correr do tempo, as letras, se juntando aos poucos, já faziam sentido para ele.