segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Aprenderia a tocar bandoneón, claro.
Seu projeto de vida era um bandoneón velho, platino, passional.
Seria um botequim miserável. Ela estaria na platéia, indefinida,
submersa na fumaça azulada, escondida a média luz.
Somente seus olhos oceânicos seriam visíveis.
Deles viria a luz necessária, o sopro de ar marítimo.
Navegaria neles o seu tango e os acordes seriam como acordes rajadas de vento.
Ela estaria no seu peito e na sua melodia bêbada.
Sua música marginal incomodaria as normalidades.
Aprenderia a tocar bandoneón e ela seria a dor infinita, o sangue sujando os punhais.
Mas ela seria, siempre, a flor solitária e definitiva.
Seria a estrela distante e grave.

domingo, 10 de janeiro de 2010

Ele,Ela.

Ele, Ela


Ele

Claro, é o sol vazando a cortina de filó. Vejo Lola tirando a roupa e seu corpo enxuto parece feito para o flamengo. Linda. Suas pulseiras dançam do punho ao antebraço a cada movimento das mãos, executando a trilha sonora para a encenação que ela faz diante do espelho, o vestido vermelho seguro pela cintura e apertado contra o peito. A cama está cheia de vestidos rejeitados. Sei que ela quer impressionar seu novo amor, o tal pintor que estréia a exposição para a qual estamos indo.

Nosso antigo quarto não tem mais nada meu. Sobre a bancada da janela muitas fotos, nenhuma minha. Todas as minhas roupas estão no quarto do nosso filho, agora que ele mora sozinho.

Um cansaço enorme invade meu corpo e penso que poderia me estender naquele pequeno espaço que sobrou sobre a cama e dormir para sempre. Meu paletó amarrotado vai fazê-la ficar furiosa. Não posso mais encará-la. O copo de uísque já está vazio pela terceira vez e o gelo é apenas um casca fina que desaparece rápido enquanto encho o copo.

Lola se volta para mim , rodando o vestido, e as pulseiras tornam a tilintar. Seus olhos estão brincando de gato e rato, como costuma fazer quando quer me provocar. Eu só penso que não agüento mais o som dessas pulseiras. O álcool aumenta o sono e bocejo sem tentar disfarçar, mas não tenho coragem de dizer-lhe que não quero ir. Que não quero mais participar dessa comédia que é a nossa vida. Que não vou mais tolerar aquele pintorzinho medíocre nem aquela gente falando besteiras sobre arte.

Saio do quarto e desço devagar as escadas, enquanto ela se troca. A porta está tão perto que não resisto, e o ar frio da tarde que cai me dá o fio de ânimo que estava precisando. Atravesso a calçada, a rua, a segunda quadra e de repente meu passo é apressado, estou correndo, estou livre dela para sempre.


Ela


Contemplo os retratos sobre a bancada da janela, na penumbra do quarto. A cortina de filó não impede o sol, que entra no quarto mas não ilumina, agora que o dia já vai terminando. Num dos retratos sou a noiva de branco, um sorriso de anúncio de dentifrício e flores de laranjeira na grinalda. Noutro uma adolescente de cabelos duros de laquê e maquiagem carregada, o mesmo sorriso de muitos dentes, com a clássica pose das dançarinas de flamengo, um braço estendido, o outro para trás, o rosto erguido. Noutra bebês gorduchos no colo, rosto sério, sem sorriso. Crianças. Adolescentes.

Em cima da cama, todos os vestidos. Procuro conter a alegria que me dá experimentá-los em frente ao espelho, rodando e ensaiando os passos da minha dança. Ele me olha através do copo e vejo que não quer sair comigo. Já está bêbado e ainda não são seis horas. Ele sabe que Rodrigo e seu charme, seus quadros, sua paixão, me esperam no salão azul do River Place. Quero um vestido que permita o xale espanhol de minha mãe, tecido em seda fina, como uma teia de aranha. Meus braceletes o irritam, Rodrigo o irrita, os vestidos sobre a cama o irritam. Esta é a minha hora. Olho-o com um sorriso que certamente o irritará. Como uma lagarta na crisálida me deixei ficar todos esses anos, me alimentando dos sonhos aprisionados num álbum de fotografias. Parecia impossível que as asas se desdobrassem e ganhassem o espaço. Nem ele nem eu acreditamos e no entanto alço vôo. Um vôo seguro. Ontem voltei a dançar. As batidas do saltos no palco, as castanholas e toda a paixão explodiram em aplausos. Depois o camarim repleto de flores, luzes, gente, Rodrigo.

Posso ver nos seus olhos que está cansado e meu sorriso é a prova de que não ligo mais. Encerro com esse sorriso os anos de reverência aos seus discos de jazz, ao seu humor fino, aos seus flertes descarados. Estou linda, segurando o vestido vermelho em frente ao espelho e as estrelas nos meus olhos iluminam o quarto, que começa a escurecer com o fim da tarde.

Borboleta


É bom vê-la assim borboleta.
Difícil entender vôo assim leve.

Bom sentir o movimento das asas
assim sustentando o corpo no ar.

Doce saber borboleta embriagada
que posso impedir esse vôo assim livre.

Basta fechar os olhos e você pousa
assim cansada em minha mão.

Basta depois abrir os olhos
assim espanto
e você está comigo
borboleta silenciosa.

Acalma fazer assim tranqüilo planos de vôo.

Fazer assim aquecido
acender assim apressado
seu fogo assim vulcânico.