sábado, 12 de março de 2011

As chuvas em Antonina

Faz mais ou menos dez dias que chove em Antonina e isso nem surpreende, uma vez que esse canto de mundo é premiado (?) por esta característica. Chove sempre. É pé de serra e mata atlântica. Mas desde o dia 10 os céus despejaram água de um jeito muito estranho, como muitas nuvens tangidas por um vento louco, em todas direções. E muita água de cada vez, como grandes, imensas baciadas de água. E pronto. Foi o bastante para uma desgraceira de casas desabando, barro pelas ruas, barrancos se diluindo, árvores vindo morro abaixo. Coisa triste, gente sem casa, impedidos de chegar até aquilo tudo que juntaram com sacrifício, sem esperanças de terem o que é seu de volta. E a surpresa nos olhos, como? como foi que isso aconteceu aqui, nessa terra onde nada disso acontece? Essas coisas são lá longe, onde só a TV vai, a gente nunca. Não aqui. Nem meu avô viu uma coisa dessas, diz o velhinho, o olho de surpresa e de decepção, julgava que Antonina nunca. Nunca mesmo, dona, fosse aparecer na TV despreparada, sem os enfeites, sem os sorrisos todos. Pois é. Agora é juntar os cacos e consertar o jarro. Com as autoridades entendendo e aprendendo. E com o povo todo respeitando a natureza.

quinta-feira, 10 de março de 2011

As mulheres não são homens

Da agência "Carta Maior".

A cultura patriarcal tem uma dimensão particularmente perversa: a de criar a ideia na opinião pública que as mulheres são oprimidas e, como tal, vítimas indefesas e silenciosas. Este estereótipo torna possível ignorar ou desvalorizar as lutas de resistência e a capacidade de inovação política das mulheres.

No passado dia 8 de março celebrou-se o Dia Internacional da
Mulher. Os dias ou anos internacionais não são, em geral, celebrações.
São, pelo contrário, modos de assinalar que há pouco para celebrar e
muito para denunciar e transformar. Não há natureza humana assexuada;
há homens e mulheres. Falar de natureza humana sem falar na diferença
sexual é ocultar que a “metade” das mulheres vale menos que a dos
homens. Sob formas que variam consoante o tempo e o lugar, as
mulheres têm sido consideradas como seres cuja humanidade é
problemática (mais perigosa ou menos capaz) quando comparada com a
dos homens. À dominação sexual que este preconceito gera chamamos
patriarcado e ao senso comum que o alimenta e reproduz, cultura
patriarcal.

A persistência histórica desta cultura é tão forte que mesmo
nas regiões do mundo em que ela foi oficialmente superada pela
consagração constitucional da igualdade sexual, as práticas quotidianas
das instituições e das relações sociais continuam a reproduzir o
preconceito e a desigualdade. Ser feminista hoje significa reconhecer que
tal discriminação existe e é injusta e desejar activamente que ela seja
eliminada. Nas actuais condições históricas, falar de natureza humana
como se ela fosse sexualmente indiferente, seja no plano filosófico seja no
plano político, é pactuar com o patriarcado.

A cultura patriarcal vem de longe e atravessa tanto a cultura
ocidental como as culturas africanas, indígenas e islâmicas. Para
Aristóteles, a mulher é um homem mutilado e para São Tomás de Aquino,
sendo o homem o elemento activo da procriação, o nascimento de uma
mulher é sinal da debilidade do procriador. Esta cultura, ancorada por
vezes em textos sagrados (Bíblia e Corão), tem estado sempre ao serviço
da economia política dominante que, nos tempos modernos, tem sido o
capitalismo e o colonialismo. Em Three Guineas (1938), em resposta a um pedido de apoio financeiro para o esforço de guerra, Virginia Woolf
recusa, lembrando a secundarização das mulheres na nação, e afirma
provocatoriamente: “Como mulher, não tenho país. Como mulher, não
quero ter país. Como mulher, o meu país é o mundo inteiro”.

Durante a ditadura portuguesa, as Novas Cartas Portuguesas publicadas em 1972 por Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, denunciavam o patriarcado como parte da estrutura fascista que
sustentava a guerra colonial em África. "Angola é nossa" era o correlato de
"as mulheres são nossas (de nós, homens)" e no sexo delas se defendia a
honra deles. O livro foi imediatamente apreendido porque justamente
percebido como um libelo contra a guerra colonial e as autoras só não
foram julgadas porque entretanto ocorreu a Revolução dos Cravos em 25
de Abril de 1974.

A violência que a opressão sexual implica ocorre sob duas formas,
hardcore e softcore. A versão hardcore é o catálogo da vergonha e do
horror do mundo. Em Portugal, morreram 43 mulheres em 2010, vítimas
de violência doméstica. Na Cidade Juarez (México) foram assassinadas nos
últimos anos 427 mulheres, todas jovens e pobres, trabalhadoras nas
fábricas do capitalismo selvagem, as maquiladoras, um crime organizado
hoje conhecido por femicídio. Em vários países de África, continua a
praticar-se a mutilação genital. Na Arábia Saudita, até há pouco, as
mulheres nem sequer tinham certificado de nascimento. No Irão, a vida de
uma mulher vale metade da do homem num acidente de viação; em
tribunal, o testemunho de um homem vale tanto quanto o de duas
mulheres; a mulher pode ser apedrejada até à morte em caso de
adultério, prática, aliás, proibida na maioria dos países de cultura islâmica.

A versão softcore é insidiosa e silenciosa e ocorre no seio das famílias,
instituições e comunidades, não porque as mulheres sejam inferiores mas,
pelo contrário, porque são consideradas superiores no seu espírito de
abnegação e na sua disponibilidade para ajudar em tempos difíceis.
Porque é uma disposição natural. não há sequer que lhes perguntar se
aceitam os encargos ou sob que condições. Em Portugal, por exemplo, os
cortes nas despesas sociais do Estado actualmente em curso vitimizam em
particular as mulheres. As mulheres são as principais provedoras do
cuidado a dependentes (crianças, velhos, doentes, pessoas com
deficiência). Se, com o encerramento dos hospitais psiquiátricos, os
doentes mentais são devolvidos às famílias, o cuidado fica a cargo das
mulheres. A impossibilidade de conciliar o trabalho remunerado com o
trabalho doméstico faz com que Portugal tenha um dos valores mais
baixos de fecundidade do mundo. Cuidar dos vivos torna-se incompatível
com desejar mais vivos.

Mas a cultura patriarcal tem, em certos contextos, uma outra
dimensão particularmente perversa: a de criar a ideia na opinião pública
que as mulheres são oprimidas e, como tal, vítimas indefesas e silenciosas.

Este estereótipo torna possível ignorar ou desvalorizar as lutas de
resistência e a capacidade de inovação política das mulheres. É assim que
se ignora o papel fundamental das mulheres na revolução do Egipto ou na
luta contra a pilhagem da terra na Índia; a acção política das mulheres que
lideram os municípios em tantas pequenas cidades africanas e a sua luta
contra o machismo dos lideres partidários que bloqueiam o acesso das
mulheres ao poder político nacional; a luta incessante e cheia de riscos
pela punição dos criminosos levada a cabo pelas mães das jovens
assassinadas em Cidade Juarez; as conquistas das mulheres indígenas e
islâmicas na luta pela igualdade e pelo respeito da diferença,
transformando por dentro as culturas a que pertencem; as práticas
inovadoras de defesa da agricultura familiar e das sementes tradicionais
das mulheres do Quénia e de tantos outros países de África; a resposta
das mulheres palestinianas quando perguntadas por auto-convencidas
feministas europeias sobre o uso de contraceptivos: “na Palestina, ter
filhos é lutar contra a limpeza étnica que Israel impõe ao nosso povo”.


Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).

terça-feira, 8 de março de 2011

Só mais um dia


O delegado Guimarães entra na sala de inquéritos enxugando o suor do rosto com um lenço xadrez. Sua camisa está grudada nas costas e tem um ar cansado. O escrivão datilografa o depoimento de uma mulher idosa de óculos bifocais e vestido escuro. Os olhinhos dela, por trás das lentes, brilham de animação.

"- Está se divertindo com isso, a bruxa!" – pensa. Tinha passado a tarde do dia anterior e parte da madrugada participando das buscas. Nem se preocupa em disfarçar a raiva, ao olhar a velhinha, que tem voz irritante e asmática:

"-... então ele me mandou deitar no chão. Sujou todo o meu vestido. Ninguém respeita gente velha hoje em dia. O sujeito me chamou de vó, ”Deita aí, vó”, como se eu pudesse ser avó de bandido. Claro que eu me lembro da cara dele, rapaz, isso eu não vou esquecer tão cedo..."

O suor brota da pele do delegado como uma mina.

O telefone toca muito alto, enchendo a sala até o limite do suportável. É o tenente Bastos:

"- Pegamos os caras, doutor. Estavam numa pensão na Quinze de Maio. Tem dois “de menor”, estão todos enjaulados. O chefe tem dezessete anos e foi baleado, coisa feia. Um dos caras apagou, mas já removemos o corpo pras Clínicas. Oficialmente morreu no caminho."

Mais um caso encerrado. Tem um sanduíche de presunto meio comido e o café da garrafa está morno e azedo. Olha cansado o escrivão e a velhinha e levanta.

”-Almoço” – rosna para as paredes.

Lá fora os repórteres de sempre caçam notícias com sangue. Na sala de espera um travesti com restos de batom nos lábios, desgrenhado e com a roupa amassada, uma prostituta e seu cafetão, ela com o olho roxo e os lábios partidos. E uma mulher imensa, com o vestido manchado de gordura na barriga, os cabelos oxigenados, conhecida na praça como vendedora de loteria, freguesa da casa, porque além dos bilhetes passa drogas.

Sente-se enjoado. Vem se sentindo assim há anos. Caso suba a rua, o tráfego o engole, a multidão o atropela. Decide-se por andar até a lanchonete duas esquinas para baixo. Nesse horário ela já vai estar vazia, as pessoas se dirigindo para o segundo expediente de trabalho.

Anda com as mãos no bolso, devagar, desviando da multidão, pensando nas férias só dali a dois meses, na praia isolada, com as crianças. Sua ex-mulher vai viajar com o novo namorado. Lembra do Oswaldo, com a voz untuosa, anel de ouro no dedo mindinho, e da última proposta, um negócio de muita grana. A "proteção" aos pontos de entrega do bagulho faz anos se tornou um filão de ouro disputado pelos outros delegados da área. O Oswaldo é o cara que esta se dando melhor, o mais antigo, da velha escola, os lábios úmidos e os olhos azuis, frios como gelo.

"- Quem chegar primeiro leva." Ele também havia chegado nessa leva A casa na praia, a moto, o barco. O saldo no banco. O caso da cantora lhe valeu mais grana, em notas verdes. Uma mulherzinha que incomodava os graúdos. E o namorado se virando para provar que não foi suicídio. Alguém da Sétima havia se encarregado de calar o bico do cara e tudo parecia estar se aquietando.

Seu estômago dá algumas voltas fazendo um ruído indiscreto.

A fachada da lanchonete é um monumento ao mau gosto, com a pintura marrom e as portas verdes. Lá dentro, os garçons limpam as mesas. Da cozinha vem o som metálico dos talheres e da louça sendo lavados.

A dona está sentada numa mesa no canto, encostada à parede. Olha para o nada, como se visse através do copo de suco à sua frente. Os cabelos são pretos , lisos, bem tratados. A saia vermelha, de um tecido oriental com estampas, se cola às pernas, escondendo e moldando. Seus pés aparecem por baixo da mesa, miúdos e cobertos por uma espécie de sapatilha que se enrosca trançada pelo tornozelo. Visual fora de moda, mas a roupa é cara .

Ela lhe lembra alguém que já viu há muito tempo, não sabe onde. Tem certeza de que não está enganado“eu não esqueço um rosto” - gosta de se gabar. Uma balzaquiana, embora à primeira vista pudesse aparentar menos idade. Em torno dos lábios tem sulcos profundos. Os cabelos, naturalmente, são tingidos, ninguém tem essa cor de cabelos, quase roxo, quase preto. Quem é ela? Tenta buscar na memória. No tempo da faculdade no velho Largo do São Francisco. Era isso! Tânia Maria não sei de quê. Naquele tempo prendia os cabelos negros no alto da cabeça. Era muito engraçado o modo como ela dizia "- vou à luta!", cercada de luxo. Costumavam chamá-la de festiva, estava envolvida com o grêmio, o jornalzinho e o pessoal mais “da pesada”, mas os dois haviam flertado uns tempos. Eram jovens, iam a festas, dançavam. Era filha do professor de direito penal, agora estava lembrando tudo.

Ainda é especial, não combina com o ambiente da lanchonete. Sente-se envergonhado das manchas de suor embaixo do braço. A calvície e o bigode branco não ajudam a identificar o rapaz que fez tanto sucesso com garotas. Não vai reconhecê-lo, com certeza. Ela faz parte do passado que não vale à pena lembrar, um tempo de idealismos que não combinam com sua carreira de delegado.

Quando se formou, tinha esperanças de conseguir emprego no escritório de algum advogado famoso e seguir carreira, mas ao invés disso foi trabalhar num buraco na periferia. Acabou mesmo entrando para a polícia, como seu pai, que era “meganha” e morreu pobre e honesto, sonhando ver o filho virar doutor.

Um dia, sua mulher apareceu com um pedido de divórcio apropriado para os dois. Agora é solteiro de novo e vive sozinho num apart-hotel, onde recebe os filhos nos fins de semana e uma ou outra namorada para espantar o medo dos pesadelos. O garçom se aproxima mal-humorado, estava esperando a mulher sair para almoçar. É um homem pequeno, com cara de quem sofre do fígado. O delegado costuma brincar com ele, mas viu que hoje tem que pegar leve.

- Que é, a patroa dormiu de cadeado?

- Queria ver você mostrar canjica pra freguês com o salário que eu ganho aqui e quatro barrigudinhos chorando em casa. Mas, se o doutor morrer com os dez por cento... - diz, sugestivo.

- Traz um chope e um americano no prato. E uma branquinha pra quebrar o gelo. E escuta aqui, meu chapa, desmancha essa cara feia senão vai ficar sem gorjeta.

A mulher agora está com os olhos fitos nele e não vai adiantar fingir que não a reconhece. Sorri para ela, sem jeito. Vê que está vindo na sua direção. Levanta-se e lhe oferece a cadeira a sua frente. Ela ainda usa o perfume francês de lilases e ele fica emocionado e tímido como um garotinho, mas procura esconder o embaraço.

- Carlos Augusto, não é isso? Do largo!- ela diz, de maneira muito formal, o que não ajuda a descontrair. - Ou, atualmente, o delegado Guima da sétima DP.

Nossa, ninguém o chama de Carlos Augusto.

O garçom o socorre, traz o chope. Aponta o copo, oferecendo, mas ela recusa.

-Ah, não, obrigada. Já estou de saída. Atualmente não bebo álcool e nem fumo. - O tom é como se fosse mais uma constatação para si mesma do que uma afirmação. Ela também parece estar com dificuldades para iniciar a conversa, mas é mais decidida que ele.

- E pode dizer como sabe tudo isso a meu respeito?

Ela ri com franqueza, divertindo-se com o seu embaraço e quebrando o constrangimento dos dois.

-Tenho lido seu nome no jornal, volta e meia. Gosto de ler jornais baratos, que estampam carnificina. Ali sempre é possível, com paciência, entrever alguma informação que nos dê pistas da verdadeira história. Optei pelo Direito Civil, mas o criminal ainda me seduz, como o grande júri de um caso sensacional, onde a testemunha chave aparece nos últimos minutos, acompanhada de inquietação do promotor e do assassino, como nos velhos filmes de Perry Mason. Lembra como gostávamos da série?

-Infelizmente. Essas lembranças fazem mais mal de que bem. Por causa delas a gente é obrigado a constatar que o sonho acabou mesmo. Acontece que agora eu tenho que lidar com a vida real, com crimes banais, sem mistério. Não são cometidos a troco de heranças ou grandes desfalques, mas por briga de quadrilhas, vingancinhas, bebedeiras. Claro que existem grandes golpes, mas esses nem chegam aos jornais, os federais tomam conta. Não grave isso. - disse sorrindo e piscando para ela.

Ela não devolve o sorriso. Talvez adivinhe no olhar do delegado uma ponta de ironia.

- É só uma brincadeira, delegado. Sei que trabalha na boca do lixo duas quadras daqui. Na verdade, sei dos seus casos nos últimos anos, isso por causa de Aída. Ela era minha amiga.

Ela o vê empalidecer, mas continua:

- Você há de convir que o caso não mereceu o cuidado devido. Tudo foi abafado, concluído rápido demais, mas tem gente que não esquece. Aída não era uma simples cantora, era uma espécie de porta voz da classe. As coisas que ela sabia outras pessoas também sabem e é difícil sumir com todo mundo, concorda? O namorado é um advogado competente. Lembra a entrevista que ela deu para a TV, uma semana antes do “acidente”? (ela mastigou um pouco a palavra acidente, fazendo uma careta).

Olha-o diretamente nos olhos. Perceberia ele agora certo desafio? Não, ela não gosta dele. Decididamente ele é alguém que passou para o outro lado. Deseja que ela saiba como é a rotina de uma delegacia. Ela, tão limpa, cheirando a esse perfume francês, aquela roupa se enroscando pelo seu corpo, querendo parecer simples. Deseja que ela veja a sala de interrogatório ao meio dia, com as moscas zumbindo e o ventilador velho, o sorriso sádico do tenente Bastos. Ou o apartamento acanhado onde nasceu seu primeiro filho, as fraldas dependuradas na cozinha, as janelas dando para um pátio estreito e sujo.

- Sei o que está pensando- ela diz, compreendendo o olhar dele para as suas roupas- Algumas necessidades até justificam esquecer sonhos, mas não princípios. Aquele atestado de óbito está registrado em cartório, impresso em jornais, tatuado aqui – aponta a cabeça. – Não consigo esquecer, e tem mais gente que não consegue. Tem tanta coisa sendo desenterrada, quem é que garante que essa não é mais uma?

Ela se levanta e uma brisa fresca o envolve, com o movimento do ar se deslocando. Abre a bolsa e deixa sobre a outra mesa duas notas de dez reais.Ele havia se enganado. Não é a mesma moça mimada do largo. Ela sorri e acena, saindo pela porta verde-abacate.

O delegado Guimarães aproxima o prato e põe-se a comer devagar. Lá fora recomeça o movimento de gente que faz compras. As buzinas tocam no trânsito congestionado. É tudo igual ao dia anterior, só que hoje se sente mais miserável.

segunda-feira, 7 de março de 2011

Cuba coraje: Llamamiento de la Red de Redes en Defensa de la Humanidad

Cuba coraje: Llamamiento de la Red de Redes en Defensa de la Humanidad

Campanha Dia Internacional da Mulher

Carta para o serviço de distribuição daquela revista


Antonina, 07 de março de 2011.

Para

Editora Abril

São Paulo – SP

Problemas relacionados com a regularidade na entrega das revistas Super Interessante e National Geographic, que assino já há alguns anos, obrigaram-me a manter contato com a Editora Abril, mesmo tendo percebido que a Super Interessante vem inserindo, ainda que de forma sutil, a ideologia bullshit defendida hoje pela Editora Abril, que tem como porta-estandarte a Veja, da qual já fui assinante, e pela qual nutro, atualmente, inescapável e incontrolável nojo. Afinal, estamos falando do esgoto a céu aberto cujas comportas são semanalmente escancaradas por seus blogueiros, editores e para-jornalistas.

Pois, bem, 0800 daqui, e-mail de lá, as reclamações devidamente apresentadas, e as providências devidamente prometidas, eis que, sem que eu tenha solicitado, o lixo veio no pacote: sim, a Editora Abril está a mandar-me, sem que eu tenha solicitado, repito e enfatizo, a Veja! Deus me livre!

Tenho recebido propostas indecentes dessa MERDA todos os meses, e tenho sido clara ao dizer que não quero na minha casa essa revista asquerosa. Hoje, dia de Carnaval, 07 de março, colocaram, sorrateiramente, na minha caixa de correio, mais uma edição da inominável. PELO AMOR DE DEUS! Eu não quero, nem de graça, esse lixo. Não quero que meus filhos e netos encontrem esse horror no meu banheiro, na minha sala, no meu lixo. MINHA CASA NÃO É UM LIXÃO para receber os detritos produzidos por Diogo Mainardi, por Reinaldo Azevedo, por Lauro Jardim, por Augusto Nunes, por esta tropa golpista, anti-brasileira e anti-popular.

Tudo isso, para dizer: VOCÊS ESTÃO PROIBIDOS DE ME MANDAR A VEJA! NÃO QUERO, NEM DE GRAÇA, ESSA TRANQUEIRA. MEU CÉREBRO NÂO É PENICO E MINHA CASA NÃO É LIXÃO A CÉU ABERTO!

Desatenciosamente,

Sonia F. Nascimento

Cod Ass 654002799-001

domingo, 6 de março de 2011

Mulher do Mar



“de olhos voltados para oeste/por sobre o mar,/ Fosse áspero o vento ou amena a brisa/ ela seguia postada/ impressa na paisagem” - O Enigma (Hardy).

Não sei o que leva pessoas como eu a fazerem confidências a alguém calado como você. Talvez seja esse seu ar paternal, meio desinteressado, a certeza de que não vai ficar, seu jeito de trovador, de homem antigo, sem sombras nos olhos. Ou a solidão. Nestes últimos dias tenho notado que você perambula pelo mato e fica cismando o horizonte. Pressinto sua partida a cada sol que nasce, e, no entanto, tem se deixado ficar ouvindo minha história. Onde foi que parei?

Ah, sim, foi como disse antes, numa dessas tardes de inverno brusco, sem sol, quando o mar bate nas rochas, esperando chegar até a porta de casa, quem sabe avançar e acabar comigo, tomar de volta as escarpas, subir até o muro de pedra e arrastar minha cabana. O mar é duro como o amor dos homens. Tenho estado por aqui tanto tempo a observá-lo, que entre nós já se formou uma espécie de casamento: nenhum de nós vai a lugar algum, embora ele ameace partir todos os dias e me cause enfado seu cheiro e a instabilidade de suas marés.

Outros homens, antes de você, passaram por aqui e deitaram em minha cama. Homens com destino certo, vida traçada, tinham alguém. Foram como chegaram, assim como você há de se ir. Não me deixaram marcas além daquelas que o vento deixa nas águas. O amor dos homens é duro como o mar.

Sou sozinha e as pessoas da cidade me olham de lado quando saio de casa. Vivo aqui há dez anos e não se acostumaram comigo. Têm inventado estranhas estórias desde que o rapaz apareceu morto na praia. Era um deles. Acho que fui a primeira mulher que ele teve. Um menino, e nem lembro mais seu nome. Dizem que o matei. Como poderia? Era só um menino. Eu não queria que ele viesse mais aqui. Tinha os olhos de cão faminto, sempre implorando. Posso lembrar seu rosto, embora o confunda com outros e é bem provável que lhe tenha acrescentado a barba que me machucava a pele, a ironia dos olhos e o sabor de sal dos beijos. Talvez mesmo seus cabelos não fossem um amontoado de caracóis nem seus dentes fossem tão fortes e brancos. Quem sabe agora essa imagem que eu tenho dele nem se aproxime da real.

A aldeia dos pescadores que você vê do alto das rochas era o lugar de onde ele vinha. Havia um armazém antes do trapiche, onde se vendia mercadorias trazidas de barco da cidade. Ele trabalhava no armazém, foi lá que eu o conheci. Costumava trazer minhas compras, entrava pela porta dos fundos. Não me lembro quando suas visitas passaram a ser tão freqüentes que já não precisavam de motivo. Eu o encontrava aqui quando voltava do banho de mar ou quando acordava tarde. Ele cuidava da horta, fazia café e organizava os manuscritos espalhados, a troco de um pagamento modesto no fim do mês.

Não, eu não o queria. Nem havia notado o brilho estranho dos olhos, seu corpo magro, as mãos nervosas. Mas eu não fazia idéia da tormenta que era sua alma. Era só um menino!

Naquele dia estava tão frio, o mar era como um inimigo , eu precisava de companhia.

Confesso que precisava de alguém. Era como se aquele dia triste fosse a estória da minha vida. E ele estava lá, parado, me olhando. Não sei como foi, lembro apenas das suas mãos nos meus cabelos, seus olhos de cão faminto.

Depois mandei-o embora.

Sua voz me segue até hoje como uma balada dentro dos meus ouvidos, um grito agoniado, um palavrão sonoro, escandalosamente claro, como o som do vento, o frio, o barulho do mar. Foi a última vez que o vi. No dia seguinte estava morto , como se fosse uma dessas gaivotas que o mar joga na praia depois das tempestades.

Esta é a história, homem, mas o que eu quis dizer é que tenho estado aqui tanto tempo, condenada a ser a mulher do mar, meu corpo definhando em noites insones, os cabelos embaraçados, os olhos encovados. Porque só o que tenho ouvido quando acaba o dia é o som da voz dele cortando a noite. E eu o tenho querido de volta, com seu rosto de barba rala, agora lembro, e seu corpo magro, porque ele era o único homem que me foi dado, que me quis sua, e eu o mandei embora, virei o rosto, fiquei surda e ele se foi para o mar. Eu o tenho amado com loucura e, como vê, o amor é um grande engodo. Sei que há de partir por esses dias, então lhe peço, deixe que chegue o verão, que seja um dia calmo de mar manso. Sua partida deve ser como a dos outros, sem marcas além daquelas que deixa o vento nas águas. O mar é violento com o que lhe pertence e o amor é um grande engodo.