sábado, 16 de outubro de 2010

Poema nº 35




O Porto Seco
(do jeito de guimarães rosa)

O porto seco, de sem-mar, do de sal depositado,
do além mais do sol, de não alcançar, e descer até;
e de rio, remanso vindo, vindo, vindo, nenhum chegando, desanunciado.
Escuto não, pois? Porto seco, de aonde?
De vai, de vem, de tudo maquinado no quente.
Longe de muito, o viajar começado - aonde o trajeto? - de lá, mesmo, e mesmo que rio que é, sendo, serpenteado, do dessa figura do não-chegar.
De rios, eu, nós, não conjugamos entendimentos, e ciência não, se tanto nunca sabemos,
nunca é, e, quando olhos-mesmo-de-ver, possível fosse,
águas de barrenta prenhez: não sei, é, hão-de, do jeito de depois, eu, nós, não-sendo foi.
Quanto nem fosse que tantos os entrementes, de assim, e apois, e, passar de árvores,
renhida a luta galhosa,de vegetais torcidosos, de doloridos uivos, raiz-de-onde,
vindo, de ter chegado, faisqueira de bem de antes: aonde, não sei, se?
Porto do seco, inseguro-não, do tremendo: volteada a costa, do jeito indo, é não,
sendo cais-de-chegar, não fundeia de ausente muito, de não vindo,
de saído ancorado no lugar de lá, dos antes, do tudo,
do porto onde exatos são os afundamentos, os de não chegares, de ver-não, de-nunca-foi.
Há o porto, do vir de onde, do depois de, do de ventos marujados.
Há de ser, fosse do que vem, do é que vinha, anunciada é a voz: porto seco, de águas-não.
Aonde, não sei, se?
(Antonina, dezembro/2001)

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Colagens e Resíduos








"Já te vejo brincando, gostando de ser
tua sombra a se multiplicar..."
(Chico Buarque de Holanda).

"Ah, abre os vidros de loção e abafa
o insuportável mau cheiro da memória."
(Carlos Drummond de Andrade).

Na mão, a sacola de compras pesa. Sente os pés em fogo, o sapato parece ficar cada vez menor. Olha distraída a vitrina e os vestidos paralizados num movimento de valsa. O reflexo de sua imagem revela o corpo seco e os traços angulosos do rosto cansado. Do outro lado da rua, o som de uma loja de discos atravessa a sua barreira de indiferença, como um sopro de memórias: é uma música dele na voz de uma cantora que não conhece. A versão traz de volta um momento de juventude, quando tudo era novo e havia uma explicação para a insensatez de sua paixão: seus quinze anos.
Vinte e tantos anos depois e a música ainda lhe provoca as mesmas sensações - "Morena dos olhos d'água, tira os teus olhos do mar..." - e então a lembrança da cor dos olhos dele, dos cabelos encaracolados e do sorriso - Ah, a boca - lhe causa um aperto no ventre. Quando se livraria da obsessão? Entra na loja, na esperança de achar um disco onde a voz estivesse aprisionada numa nova canção, que pudesse soltar pela casa, que vazasse as janelas, chegasse até os vizinhos, ganhasse a estrada que a conduziria de volta ao passado.
Vã esperança. Ele não grava há pelo menos dois anos. Sai da loja e a realidade do sábado a invade, o relógio da XV anunciando o horário de almoço. O vento gelado doi na pele. O relógio, novamente piscando, marca a temperatura. O azul do céu espalha festa pela avenida apinhada de gente. A música continua a tocar na sua cabeça, fundo. Anda , empurrada pela multidão, os pés doendo, a sacola pesando, mas feliz e entregue às lembranças...
.

Alegria, alegria

Minha amiga Luíza está lá na cozinha, escondendo atrás da porta o estandarte. Seu olho está começando a ficar roxo, mas ela ri, vitoriosa. “Eu bem que disse”- falo, procurando gelo e embrulhando-o no pano de prato. Ela recusa o gelo e tagarela sobre a passeata e o ar se enche da sua voz. Desisto de aplicar-lhe o gelo e o mastigo, deixando que um pedacinho escorra pelo canto dos lábios e desça pelo meu decote, se enfie no sutiã e o molhe, provocando-me um arrepio na pele. A sensação do gelo permanece. Gosto tanto de Luíza que me deixei convencer a ir à passeata. Minha mãe está nos maldizendo lá na sala, mas papai me olhou orgulhoso por trás do jornal. Eu ligo o rádio da cozinha à procura de notícias e juntamos nossas cabeças, felizes. Passa uma música, um "jingle" da Mesbla, “compre obrigações reajustáveis do Tesouro Nacional”- o noticiário da Tupi diz que um estudante - Edson Luís - morreu no Rio durante a passeata. Volto e sintonizo. Agora estamos sérias, minha mãe está ainda mais séria na porta da cozinha e meu pai fechou o jornal. Foi assim que deixei de ser criança.

... e o pensamento volta no tempo como o túnel do seriado de TV, e, em algum canto da mente, há um porão atulhado de sombras, lembranças evitadas que teimam em continuar vivas.
O Casamento I

Novembro. Alguém na rua Direita assovia "A Banda". O país vive dias agitados, mas no meu coração, tão jovem quanto eu, alimento a esperança de que algo aconteça e mude o rumo de minha vida. Na bolsa, carrego o salário, já destinado à compra de um vestido de noiva, umas peças do enxoval e quem sabe um sorvete. Na bolsa também levo uma carta, pois é natural que aos dezenove anos escreva uma carta de amor. Mesmo que seja para o ídolo do momento. Estou apaixonada e finalmente enchi-me de coragem para lhe escrever. No momento, meu noivo é apenas um ser abstrato. A perspectiva de casar parece remota, enquanto olho vitrinas à procura de um conjunto para a cerimônia civil, barato, mas que dê a impressão de elegância. As duas mulheres que trago dentro de mim têm pouca semelhança: uma se prepara para o casamento como se o destino já tivesse decidido assim, a outra sonha com o rapaz tímido, que faz músicas para outras mulheres, que vão para o mar ou que se penteiam enquanto ele morre de paixão sob a janela, felizardas indiferentes, enquanto eu amargo a frustração de saber que nunca vou pôr a carta no correio.

Entra numa loja para fugir do frio e da multidão. É um antiquário atulhado de coisas que não combinam com sua casa branca, cheia de metais e vidros. Todos os objetos foram escolhidos por ele e, agora que se foi, uma vontade louca de mudar tudo se agita dentro dela.

O Casamento II

Tento escapar dos teu olhos, porque me conheces tão bem e às vezes tenho a impressão de que invades o meu cérebro e te apossas do meu pensamento. Sinto pesadas as cadeias que me prendem a todas as obrigações de trabalho, do lar, da vida. Minha alma sonha vôos, sinto-me, às vezes, capaz de tudo, não fossem essas cadeias. Há em frente dos meus olhos tanta estrada, e eu já estou indo, devagar, e, enquanto isso, tento disfarçar minha partida com os olhos fitando o nada; solta minhas mãos, deixa que eu vá ... não fossem tantas e tão pesadas as cadeias...

“Não posso esquecer a flanela dos pijamas dos gêmeos.” Tem uma lista na bolsa e o orçamento apertado não vai lhe dar muitas chances de escolha. O cheque especial foi reduzido pelo banco. Olha os objetos expostos, com preços proibitivos.
O casamento III

É Billie Holliday que gira no prato da vitrola. É bem o estilo dele, decorando a letra para impressionar Luíza. Estou enjoada e acho que é gravidez novamente, o que me deixa à mercê de seus caprichos. Ninguém, em sã consciência, vai embora de casa com o segundo filho na barriga - vai dizer minha mãe. O enjôo aumenta, o som da vitrola roda na minha cabeça e tenho vontade de matá-lo, mas me deixo ficar aqui, ancorada.

A loja tem coisas lindas. Um conjunto formado por licoreira e copinhos de cristal rosa lembram a casa das tias solteiras, com paninhos de crochê, o piso de tábuas largas enceradas, sem um risco. Protegido por uma vitrina, um xale lhe enche os olhos de lágrimas, que tenta disfarçar, enquanto sai correndo da loja, causando espanto aos clientes e à mulher atrás do balcão.

O Baile

Todos os rapazes vão de terno. Não há como escapar desse salto alto e o vestido me deixa feito um bolo de noiva, mas o rosto afogueado trai a emoção. Ou será o champanhe que papai havia guardado para hoje e que me deixou tonta no segundo gole? Não esqueça de: 1) Descer as escadas equilibrando-se nos saltos (você treinou isso o mês inteiro). 2) Virar devagar para não entortar o pé. 3) Nada de chorar, pois o rímel escorre. O barulho do salto na madeira dos degraus, enquanto lá embaixo minha mãe espera com a bolsa branca e o xale espanhol (ela vai deixar-me usar a sua preciosidade!) Ele é uma teia fina de seda, de todas as cores, como raio de sol sobre prisma de cristal. Um último degrau, o xale sobre os ombros nús, meus cabelos duros de laquê, e ele me esperando ao pé da escada, como um filme da Sandra Dee. Partimos rumo a Ray Coniff, Beatles e Cuba Libre.

Para na porta do Cine Ritz para ver os cartazes. Antonio Banderas lembra Pierre. “Hoje é o dia internacional das lembranças ou será que vou morrer?”- pensa, sorrindo.

O amante

Um amante latino, era o que ele era. Tinha até um boné francês, que usava meio de lado. Eu o chamava Pierre, embora ele tivesse um nome sírio. Chamando-o Pierre, eu achava estar valorizando nosso amor suburbano e lhe escrevia versos. Desejava-o, embora (e talvez só por isso) o achasse um cafajeste. Sua beleza latina pedia um bigode, mas ele tinha uma vasta barba negra e sua pele era morena de sol. Sonhei casar-me com ele, mas ambos já nos havíamos casado antes e tenho certeza de que no fundo eu não o queria para nada mais que não fosse o amante latino que ele já era. Juramos mentiras até que nos cansamos e ele se foi, como uma letra de bolero.



“E se eu comprasse um livro, ou arrumasse os cabelos, ou assistisse a essa fita?” - pensa, entrando na livraria. Vinicius de Moraes tem a vida estampada em duas biografias, bem na estante da frente. Lembra da filha adolescente, que gastou sua Antologia Poética copiando os poemas para os namorados. Pega uma das biografias nas mãos. Os livros estão tão caros! Olha a moça ao lado, elegante no seu sobretudo de lã grená, mãos bem cuidadas escolhendo livros na prateleira . Não pode deixar de comparar seu próprio sobretudo, que já teve dias melhores, e suas unhas curtas, sem esmalte. “Preciso dar um jeito na minha aparência”, pensa, escondendo as unhas.




O Casamento IV

Como escapar da mediocridade desses dias iguais, quando procuro nas tuas camisas marcas de batom ou resquícios de algum perfume barato, quem sabe até um fio de cabelo louro dessas polacas com cara de sonsa e fogo entre as pernas, que se abanam no teu nariz? Tua segurança me machuca. Teu olhar tranqüilo me devora. O fato de te saber teu me estraga o apetite e tira o sono. Vejo as noites acabarem em espiral de fumaça, examinando meu corpo para descobrir porque já não te domina. Quero tua cabeça numa bandeja, te maldigo e no entanto meus olhos mendigam teus carinhos tão antigos. O desespero da carteira de cigarros vazia se segue ao desespero dos primeiros raios de sol. Investigo como louca indícios da traição pelo quarto, no porta-luvas do carro, na tua carteira de documentos. Preparo os pratos que gostas, eu que odeio cozinhar, seguindo a receita da cartomante cigana: “ponha no molho dois cravos, deixados de véspera no sereno. Coe o molho num lenço virgem, que deve ser jogado num rio de pedras.” Meu corpo arde em desejos de devorar teu corpo, decifrar teu silêncio e, finalmente vitoriosa, te reduzir à condição de antes, para que voltes a ser alguém que conheço, que me pertence. Porque te sinto escapando dos meus dedos para uma vida tua, para longe do nosso cotidiano de vinte anos de mascarada felicidade.

Céu curitibano fora da livraria. Na Boca mais um ato de bancários em greve. “Eu bem podia plantar amor-perfeito no jardim, naquele canto de pedras”- pensa, passando sem parar pela banca de flores. Arrepia-se de frio com o vento encanado, mas os pés já estão ardendo de cansaço. Um dia lindo, no entanto daria tudo por um sol tropical, areia branca, côco gelado, o velho e tão familiar vento do mar. “Estou envelhecendo” - pensa. A saudade do mar não machuca tanto quanto nos primeiros meses. “Quem te enfeitiçou, o mar m’arrebatou...”




Voltar para onde?

Todos os caminhos me levam para longe do teu sol branco, teu movimento do porto, o cheiro salgado das algas, restos, entulhos que atracam na praia na maré baixa. As estradas que percorro têm um perfume de pinheiros e uma gralha azul que canta triste no cair do sol, mas o cheiro do mar está impregnado na minha pele e em algum lugar do meu coração uma bússola absurda aponta o caminho das rochas e pescadores, o ruído das águas batendo no casco dos barcos, o silêncio solene da manhã nascendo, do teu sol branco despontando.
Por que as estradas me levam ao planalto, para o sul, sempre para o sul, quando só o que desejo é voltar e ouvir o ruído alegre de tuas feiras de peixe, o colorido das roupas sem compromisso dos adolescentes, teu movimento contínuo de gente que vem e vai, apressada, tagarela? Talvez seja apenas a certeza de que não encontrarei ali a minha fé, minhas verdades de então. Nem os amigos, que se perderam por outros caminhos, ou já viveram outra vida não compartilhada comigo, e já não somos parecidos, pobres jovens sonhadores, donos da verdade, da simplicidade de soluções definitivas.

... flanela para os pijamas dos gêmeos, aproveitando a liquidação do final de inverno, meias de náilon, um vestido que seja elegante - mas barato- , quem sabe um sorvete nas Lojas Americanas. O relógio pisca novamente a temperatura. Só então nota que está de volta à mesma loja de discos. Entra decidida e compra o da cantora desconhecida e três CD’s de coletâneas, músicas que já tem há anos. A sensação de felicidade se dilui. “Nem sorvete, nem cinema, nem cabelo diferente.” Segue para o estacionamento, levando apenas a saudade de Chico Buarque, além de uma sacola que pesa e um grande cansaço.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Poema nº 8




Aprenderia a tocar bandoneón, claro.
Seu projeto de vida era um bandoneón velho, platino, passional.
Seria um botequim miserável. Ela estaria na platéia, indefinida,
submersa na fumaça azulada, escondida a média luz.
Somente seus olhos oceânicos seriam visíveis.
Deles viria a luz necessária, o sopro de ar marítimo.
Navegaria neles o seu tango e os acordes seriam como acordes rajadas de vento.
Ela estaria no seu peito e na sua melodia bêbada.
Sua música marginal incomodaria as normalidades.
Aprenderia a tocar bandoneón e ela seria a dor infinita, o sangue sujando os punhais.
Mas ela seria, siempre, a flor solitária e definitiva.
Seria a estrela distante e grave.

Paulo Cequinel