sábado, 8 de outubro de 2011
Porque parou, parou porque...
terça-feira, 4 de outubro de 2011
Sonho de menina
Sonia Nascimento
Larissa lembra, já faz uns dois anos que sonha com a boneca. Viu-a pela primeira vez na casa da patroa da mãe. Na época em que se comemora Natal ela aparece como a estrela dos anúncios de televisão. É tão linda, fofinha, com cara de bebê de verdade, e vem com um monte de roupinhas pra trocar. Sabe que a mãe nunca vai arranjar dinheiro suficiente pra comprar esse presente, mas não desiste. Vai para a escola no turno da manhã, e as meninas falam da boneca, é o sonho delas. Todas são como ela, moram na mesma vila, mas algumas parecem ter privilégios. A mãe fala sem papas na língua de onde vem os recursos dos pais dessas amiguinhas, e ela já tem idade suficiente para entender o que é tráfico de drogas. Está proibida de visitar a casa dessas meninas, principalmente uma delas, que mora justo em frente à sua. Mas a mãe não tem tantos olhos nem tanto tempo para vigiá-la. Trabalha em período integral na casa de uma professora, num bairro distante. De vez em quando a patroa permite levá-la, e ela passa a tarde na cozinha, entediada, enquanto a mãe arruma todo o apartamento, varre, espana, limpa vidro. Só gosta de ir porque pode comer coisas diferentes, a patroa deixa sempre um sorvete, um iogurte, bolo, sobremesas, tudo guardado para ela na geladeira. Não tem crianças na casa, mas a filha do zelador a chama sempre pra brincar e ficam as duas trancadas no quarto, cheias de brinquedos que Deocelly ganha dos moradores do prédio. Mas nem mesmo ela tem aquela boneca sonhada.
A patroa não tem crianças, mas gosta de comprar brinquedos para os sobrinhos. Foi perto do Natal que ela viu a boneca sendo embalada para uma longa viagem, ia ser entregue pelo correio para uma menina que ela não conhecia, no sul do país. Dona Iara a deixou segurar um pouquinho e ela quase desfaleceu ao sentir o corpinho do bebê junto ao seu, a cara rosada cheirando a morango. Desde esse dia sonha com um presente igual, mas sabe que a mãe nunca vai poder lhe dar.
A mãe não a engana quanto a essa possibilidade. Pelo contrário, ela é muito dura quando lhe mostra a realidade da situação das duas. Não conheceu o pai e os parentes da mãe moram no norte, muito longe. Falam-se por telefone quando ela consegue ter créditos no celular, o que é muito raro. Chegam longas cartas, em letra muito atrapalhada que ela não consegue decifrar. Tem fotos dos avós e tios, gente pobre como as que os documentários da TV mostram de vez em quando.
Fica sozinha quase todas as tardes, exceto quando vai com a mãe para o trabalho dela. Burla a vigilância e vai brincar com Mariana. a menina da casa em frente. A casa de Mariana é melhor, com um quarto só para ela na parte de cima. A casa foi reformada com dinheiro da venda de drogas, de acordo com as conversas dos vizinhos. Não é grande coisa se comparada com as casas do bairro da patroa da mãe, mas é a melhor da vila. Tem até varanda e um quintal caprichado, com churrasqueira e lugar pra brincar. E as brincadeiras na casa da Mariana são mais divertidas quando o pai dela está em casa. Ele gosta de crianças, sempre tem balas e chocolates, deixa que as duas entrem na casa, que brinquem no quarto dela. Mariana tem um Bebezinho, mas não a deixa tocá-la quase nunca. Desde que notou o quanto Larissa a deseja, regateia e esconde, valorizando o brinquedo ainda mais, trocando o simples ato de mostrá-la na caixa por posições nas brincadeiras (eu é que sou a mãe, eu é que sou a professora, eu é que era a princesa, eu que ganhei mais pontos). Ela cede fácil quando em troca pode tocar a boneca, cheirá-la, amassar com as mãos as sua roupinhas.
O pai de Mariana diz que vai lhe dar um Bebezinho. Assim tem repetido quando brincam de papai e mamãe, uma brincadeira que começou com esconde-esconde e tem evoluído para coisas que ela sabe que não são muito certas. A mãe sempre lhe diz que não deve deixar nenhum homem tocar seu corpo. Logo será uma mocinha e vai poder namorar, mas agora deve preservar-se. Nunca vai contar à mãe. Tudo que o pai de Mariana faz é feio para os padrões dela, mas Larissa deixa, porque só assim vai poder ganhar sua boneca. Na semana passada ele pediu que ela tirasse a roupa. Ela ficou com medo. Doeu e saiu sangue, e teve que prometer não contar a ninguém. Agora ele tem repetido a brincadeira, que evoluiu para outras coisas. Não sabe como fazer para que a mãe não perceba. Tem que chegar cedo em casa, antes dela, e trocar-se, lavar, não demonstrar que está machucada.
Por isso está se preparando tanto hoje. A mãe já foi, Mas não vai à casa de Mariana. O pai dela é quem vem brincar, isso é um segredo dos dois. Disse que vai lhe dar banho, perfumar, enxugar. Em troca, amanhã vai ser o grande dia. Nem acredita que seu sonho vai virar realidade. Ele vai trazer a boneca e então vai poder ficar longe dele, nunca mais vai machucá-la. E ela nunca mais vai precisar sair de casa, porque vai ter a sua própria filhinha, seu bebezinho, sua bonequinha.