Numa
daquelas noites em que a gente não consegue dormir e que um desassossego invade
o coração, causando o impulso de levantar, abrir a janela e contemplar a noite
escura, ou descer pelas escadas, abrir a porta da rua e sair andando até
encontrar uma taverna aberta, com barulho suficiente para atordoar a alma,
ouvi, entre uma caneca e outra de cerveja, a história de um homem que me causou
profunda estranheza, em parte pela sua aparência de morto, em parte pelo
inusitado do tema. Essa é a história que passo a narrar, e que fica a seu
critério levá-la em conta, quando for viajar para qualquer lugar que não
conheça e que não seja você a pessoa que escolheu o destino da viagem.
“Eu
me chamo Pietro Bonarve – disse ele -e nasci na Baviera, numa aldeia de nome Markbreit. Trabalhava como meeiro de um senhor, dono
de muitas vinhas na aldeia, um homem mesquinho e que não tinha piedade quando
as colheitas eram magras. Nunca fui casado, pois a solidão das terras de vinha
e o serviço pesado da plantação e colheita não atraiam as mulheres da aldeia.
Um dia bateu à porta da minha casa uma mulher estranha, em trajes inusitados,
que me pedia água e pouso. Era uma criatura bela, de voz pausada. Vestia calças
justas como os nobres varões da capital, Munique. Deixei que ela entrasse, que
comesse da minha comida e, por fim, instalei-a em minha cama e fui dormir no
celeiro. Quando o dia amanheceu, encontrei a casa limpa e o fogo aceso. Ela
havia feito uns pães com a farinha e os ovos que minha mãe me mandara no começo
do mês. Fiquei muito feliz de comer os pães e vinho antes de sair para
trabalhar, mas não vi a mulher em canto algum da casa. Na volta do trabalho
fiquei convencido de que ela se fora.
No
dia seguinte, aconteceu a mesma coisa, só que dessa vez uma outra visitante,
com trajes coloridos e cabelos soltos, sorridente e encantadora, me pediu que a
abrigasse aquela noite, pois seguia uma viagem “no tempo”. Embora não tenha entendido o seu destino,
deixei que ela ficasse no mesmo local da anterior e fui dormir de novo na palha
do celeiro. Pela manhã, a mesa estava posta com leite quente e comidas
estranhas, que eu nunca tinha visto, uns bocados crocantes que se esfarelavam
ao toque, com um sabor intenso de toicinho do fumeiro. Mas da moça não havia
sinal na casa e nem na aldeia, para onde fui em busca das duas desconhecidas.
Não
soube mais nada e a história ainda me intrigava. Na aldeia fui alvo de risadas
e todos acreditavam que andei tomando o vinho mais do que devia e vi coisas que
não existiam. Houve até quem mencionasse que eu estava sob o poder de alguma
bruxa ou do próprio demônio.
Um
mês depois, recebi a visita de um cavalheiro vestido de preto, com sobrepeliz
de lã que lhe ia até a metade do corpo. Usava estranhas argolas na altura dos
olhos, cobertas de vidro, e trazia uma bagagem de couro, que abriu para me
mostrar o conteúdo. Havia nela apetrechos feitos de metal e vidro de várias
formas, que emitiam luzes azuladas, além de uma muda de roupa leve e livros de
um material que ainda não vi serem feitos por aqui. Pediu-me pouso em uma
linguagem enrolada, com alguns termos germânicos que ele procurava em um dos
seus livros. Eu consenti, mas fiquei temeroso de que estivesse sendo testado
pela inquisição. Naquela noite trouxe um pouco da palha para perto do fogo da
cozinha e decidi esperar a noite toda acordado, para ver o que acontecia na
casa. Se estava sendo alvo de bruxas e feitiçaria, precisava avisar o padre da
aldeia. Abri a porta do quarto e vi que meu hóspede dormia a sono solto, com a
boca aberta e roncando, enquanto aqueles apetrechos sobre a mesa emitiam ruídos
e luzes. Nem bem o dia amanhecia e ele já estava pronto, os pertences
acomodados de novo na bagagem de couro. Foi à cozinha e com água quente
preparou um líquido negro na minha caneca de vinho, que exalava um perfume
suave de erva, semelhante às poções de chá que minha mãe me preparava quando eu
adoecia. Ele me falou, consultando o livro grosso com visível dificuldade, que
estava de partida. Perguntei-lhe se conhecia as mulheres que também me
visitaram e ele ficou olhando, sem entender o que eu dizia. Por fim, foi para o
pátio das galinhas e olhou para cima, com a mão aparando a luz do sol. Eu fiz o
mesmo e, para o meu espanto, uma grande carruagem de fogo e metal se aproximou
da casa e pousou, como um inferno de barulho e calor. A porta se abriu e uma
escada feita de metal branco foi lançada para fora em passes de artes mágicas,
por onde subiu o cavalheiro, que me acenou da porta antes de sumir com a
carruagem num pé de vento. Fiquei doente por um mês e se não fosse minha
querida mãe vir da aldeia para cuidar de mim, teria morrido sozinho. Não contei
a ninguém de Markbreit sobre isso. Sai da aldeia depois que me curei e nunca
mais voltei ali. Tenho viajado pelo mundo todo atrás de alguém que possa me
explicar o mistério dos visitantes. Você saberia me dizer?”
Achei,
depois de ouvir o relato do aldeão, que ele estava embriagado pela cerveja
escura e forte servida na taverna. Ou que havia enlouquecido de solidão na sua
plantação de uvas. Voltei para casa devagar, pensando naquela história louca,
quando fui abordado por uma linda mulher em trajes masculinos e de cabelos
curtos, que me perguntou o nome da cidade, pois precisava corrigir sua rota.
Foi assim que decidi acompanhá-la e vim parar aqui, com vocês, no que dizem ser
o século vinte e um, neste lugar cheio de médicos e enfermeiras, que me entopem
de comprimidos e que não acreditam em viagens pelo tempo. Quanto à mulher,
voltou para o seu tempo, não sem antes prometer me levar para conhecer sua
família, nas próximas férias.
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