Olha no espelho os olhos pintados com capricho e o cabelo impecável, alisado pela chapinha e a escova marroquina. A saia de cintura baixa mal cobre o púbis, e deixa à mostra coxas grossas e morenas, bem torneadas. No espelho, de perfil, examina o traseiro arrebitado, menor que o da amiga, mas quase perfeito. Não esconde o desgosto pela vantagem que Tatiene leva sobre ela. Mas tem os olhos verdes e a boca carnuda, enquanto a amiga é quase feia de rosto. As duas têm treze anos. É o primeiro baile funk, mas a mãe nem desconfia dos planos que as duas vêm urdindo faz quase um ano. As outras amigas são liberadas da tutela dos pais, que não estão preocupados em como se divertem, bastando que cheguem antes que eles acordem pela manhã e se deitem como quem já dorme há horas. Ela nunca pode sair sozinha e a amiga mora no mesmo conjunto habitacional. As mães são conhecidas e vizinhas desde que se mudaram para lá, quando ela era uma garotinha de três anos. Cresceu na vila, conhecida como “Maré Vermelha”, porque fica perto do mangue e os prédios foram todos pintados de vermelho para a inauguração. Agora é um festival colorido, embora alguns prédios não tenham renovado a pintura e ostentem um vermelho sujo, quase marrom.
O baile funk rola todo sábado e é animado por uma turma pura nóia. As meninas mais velhas não lhes dão confiança de contar o que acontece no baile, as duas são pirralhas, mas as músicas elas sabem de cor. A rádio da comunidade toca durante o dia todo. Na escola se formam grupos no intervalo e a dança só é interrompida pela diretora quando o sinal da última aula já soou e ninguém se incomoda de entrar nas salas.
A mãe quer um destino diferente para ela, mas não sobra dinheiro para pagar escola particular e nem vaga em bairros mais seguros, por isso sabe que o destino da filha não será diferente das outras a não ser que vigie incansavelmente. O pai é porteiro de prédio de rico. Veio do nordeste há muitos anos e se conheceram no mesmo prédio em que ele trabalha até agora. Ela conseguiu deixar o emprego de doméstica quando nasceu a filha. Ajuda no orçamento vendendo Avon para as vizinhas e alisando os cabelos das adolescentes do conjunto. Ela se vira. Pela frequência das meninas na sua casa sabe como são os bailes e nunca vai deixar Daiane entrar num lugar desses.
O olho de Daiane lacrimeja, reagindo à maquiagem. Puxa um pouco mais a saia para baixo, pondo à mostra a marca do biquíni e a linha dos pelos, mas decide voltar à posição anterior, descobrindo o traseiro um pouco, só o suficiente para mostrar as duas dobrinhas. A amiga ri, passando a mão de leve:
-Isso é só uma amostra do que tu vai passar lá no baile. A Karina diz que os manos enfiam a mão na calcinha quando a gente abaixa na dança.
-Ê, em mim só vai passar a mão quem eu deixar.
-Então é melhor nem ir, irmã, se liga.
A mãe pensa que elas vão assistir a um filme na casa de outra amiga, no outro lado da vila. Nem estranha a roupa e a maquiagem, elas se vestem assim todos os dias. Daiane tem autorização para dormir na casa dessa outra amiga, a mãe tem medo que a filha tenha que vir sozinha e sabe que o marido não vai buscar, ele chega cansado, janta e dorme.
Está pronta, mas não pode sair assim, a mãe vai matá-la. Cobre tudo com uma jaqueta jeans do pai, enrolando a manga até o cotovelo. Põe uma sandália de plataforma que aumenta sua altura e a faz parecer mais velha. Agora sim, está perfeita! – pensa, enquanto a amiga lhe dá uma piscadela para advertir sobre a presença da inimiga, a mãe, que se aproxima devagar pelo corredor, para vigiar as duas, tão quietas.
Ao saírem, uma série de recomendações: - Direto pra casa, nada de parar e conversar com os meninos, estranhos ou conhecidos. Nada de aceitar convites, ligar para quem quer que seja, assistir filme pornô. Ai dela se souber que tem namorado. Ai das duas se desconfiar de alguma coisa errada. E mal a porta se fechou saíram em disparada pela rua principal, rindo como loucas e cantando as músicas que todas as garotas da escola sabem de cor.
O baile só começa à meia-noite, dá tempo de comprar um ”x” e uma coca na lanchonete, voltar pra casa da amiga e ficar dando um tempo até as mães dormirem. Todo mundo tem a chave da entrada. Ela resolve testar a roupa que está usando e tira a jaqueta na lanchonete. Sorri para o grupo de meninos na outra ponta do balcão e fica feliz ao ver que todos eles estão de olho nas suas pernas. A boca melada de gloss se abre num sorriso que ela ainda não sabe ser um convite. Eles se aproximam, todos ao mesmo tempo, e rodeiam as duas. O dono da lanchonete prefere ignorar o grupo e vai servir umas mesas do lado de fora.
São cinco rapazes e um deles conhece Tatiene.
-Aê, vão no som?
-Tamo a fim, só tem que achar um carinha pra levar a gente. É a primeira vez.
A primeira vez. Todos eles olham com mais interesse para as duas, que decidem, sem terem combinado antes, fazer um gênero de meninas experientes.
- No baile, tá sabendo? Já fomos em outro, noutro bairro, com minha irmã mais velha. E Tatiene ri, mostrando uma fileira de dentes brancos.
- Já é, maninha. Vamo, tipo, agora.
Elas não acreditam, primeira vez e já sacaram cinco manos pra acompanhar. As garotas mais velhas vão morrer de inveja, os caras são maneros. Vão pelo atalho, um caminho evitado por todas as meninas. Ali acontecem os assaltos e estupros que alimentam os jornais e a rádio da comunidade. Mas não dá nada, estão acompanhadas. Dois deles já encaixaram as amigas nos braços:
- Tá comigo, tá com Deus!
-Aê, gatinha vamo adiantar o balanço, abre pra nós.
-Abre o que, ô Mané – Tatiene tenta soltar o braço, mas o garoto segura com força e muda o tom de voz.
-Calma aí, menina, primeiro vamo brincar um pouco.
Daiane percebe finalmente que a sua primeira vez está prestes a começar.
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