quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Pequeno tratado sobre a vida



Olhou impiedosamente para a própria imagem refletida no espelho do banheiro, procurando os sinais da idade. O espelho embaçado, limpo apenas na área do rosto, transformava-a num fantasma conhecido. Procurou pelas manchas, as antigas, que já havia tratado com ácidos e produtos declarados milagrosos pelas revistas femininas, mas que teimavam em agonia-la, impávidas, resistentes. As novas já se deixavam adivinhar sob a pele, incipientes sardas opacas. Sorriu para a imagem e os dentes, que eram seu orgulho, brilharam um tanto amarelados. Limpou o espelho com a mão até a área do busto, reparando as rugas que se formavam no colo sardento. O peito, firme para a idade, revelou a pele branca, o bico rosado e desbotado. Não queria, mas com firmeza, passou a toalha por toda a superfície do espelho, fitando com desgosto a cintura e o quadril, deformados pela gordura, mas as pernas ainda estavam firmes, a superfície lisa e branca, a pele fina sobre os músculos.
Suspirou e terminou de enxugar-se, espalhando creme onde achava necessário. O ritual a deixava exausta e já não lhe dava prazer. Queria poder vestir todos os dias uma roupa especial e diferente, como as que usava quando era jovem e trabalhava. Nada de jeans e camiseta com ela. Eram saias longas de seda e batas indianas, sandálias de enlouquecer podólatras. Mas esse tempo havia passado, o clima havia esquentado, não sabia de nada que pudesse vestir sem que morresse de calor.
O quarto parecia desabitado sem ele. Era amplo, com guarda-roupas antigos, de madeira maciça, herdados da avó, com um cheiro bom de creme de móveis, que ela mesma passava nos fins de semana, conjurando os demônios para eliminar do mundo as empregadas relapsas. Deitou na cama, sentindo no travesseiro o cheiro dele. A tentação de permanecer deitada era grande, mas sabia que se cedesse corria o risco de voltar a ficar doente, por isso pulou ligeira e desceu as escadas, fingindo que não via a imagem que os espelhos espalhados por todos os cantos da casa refletiam à sua passagem. Não queria olhar-se de novo. Não gostava daquela mulher de cabelos brancos que agora habitava o seu corpo.
O aroma de café fresco animou-a. Era urgente sair de casa antes que percebesse que não havia mais rotina de panelas cheirosas, de mesa posta com capricho. Almoçar no restaurante por quilo, perambular pela cidade nas lojas de 1,99, entrar num salão de bingo. Esquecer da vida, dos netos, dos filhos, de como agora sua vida era um abrir e fechar de portas que davam sempre para um quarto escuro, que era ela mesma e sua solidão.
Antes que abrisse a porta, o telefone tocou. Queria já ter saído, pensou em não atender, mas sabia que nunca conseguiria resistir ao zumbido de um telefone.
-Mamãe, você vai sair hoje? – A voz da filha traia a preocupação, embora ela se esforçasse por parecer casual e alegre. Ela a conhecia, ah, como conhecia tão bem todos eles.
-Já estou de saída, quer alguma coisa da rua? – Ela também procurou parecer despreocupada, mas sabia que a filha era igual a ela e que continuariam o teatro, as duas, fingindo.
-Não. Queria convida-la para o cinema à tarde. Entreguei ontem a encomenda para o restaurante italiano e gostaria de comemorar, ir à uma confeitaria, um cineminha, comprar uma bobagem no shopping. – A quem ela pensa que engana?
-Não posso. Combinei com as irmãs Pascoala de passar na creche.
-Você não vai ficar em casa mesmo, não é? Por que eu posso passar aí e pegar você. – A voz da filha já tinha o toque de alarme, mas ela ficou firme.
-Não se preocupe, querida, eu estou com a tarde cheia de compromissos.
A filha insistiu um pouco mais e desistiu, desligando.
Pronto. A diarista assoviava animada, com vassouras e baldes de água. Precisava sair dali antes que desandasse a ajuda-la e então estaria perdida.
Parecia que há tão pouco tempo as crianças enchiam a casa de coisas fora do lugar. Sapatos, cadernos, agasalhos, revistas. Saiu batendo a porta, desesperada por encontrar alguma coisa que a animasse, uma conversa inteligente, um livro novo de alguém que ainda estivesse vivo e tivesse alguma coisa a ver com ela.
-Todo mundo está indo embora! – pensou.
Mas estava pensando nele. Em como gostavam de entrar numa livraria, num sebo, cada um para um lado, enchendo as cestinhas, e se encontrando no caixa com cara de culpados. Em como ficavam horas discutindo seus pontos de vista sobre o filme que haviam assistido, ele à força de muita conversa convencido a sair de casa. Em como gostavam os dois de jantar no Alemão, tomar um submarino e descer o Largo da Ordem em silêncio, observando os bêbados e os jovens de roupas coloridas.
Quantas vezes pensou em como seria bom ficar sozinha? Milhares, sempre que tinha um monte de louça e pilhas de roupas para lavar, quando a divisão dos trabalhos domésticos era injusta e o orçamento apertado não permitia passeios pelas lojas nem um chopinho aos domingos.
Lá fora estava frio, o vento de maio cortando a alma em fatias geladas. Seus olhos arderam e ela fingiu acreditar que era o frio o responsável. O agasalho era confortável, tinha posto luvas e provavelmente pareceria uma velhinha elegante. Quase sentiu sobre o braço o peso da mão dele, que gostava de guia-la como uma criança enquanto caminhavam.
Quando se conheceram, ela estava saindo de um casamento longo e sem vida. O filho teimava em acompanha-la, ciumento das roupas novas e da mãe reciclada, mas ele a fazia parecer uma adolescente, driblando a vigilância das crias, mandando rosas para o trabalho, levando-a para dançar. Ela havia ficado surpresa com o poeta escondido em camisetas vermelhas com slogans. Era um sindicalista de barbas negras e olhar insano, mas tinha alma de passarinho aquele homem que já fora magoado. Trouxe na bagagem apenas suas camisetas e bandeiras. Ela foi sabiamente substituindo-as por roupas mais apresentáveis, mas foi só o que conseguiu mudar. Sua alma de guerrilheiro permaneceu íntegra, mesmo quando os companheiros se incorporaram àquilo que nós chamamos sistema. Sua barba negra foi branqueando até tornar-se de algodão. Parecia ter uma saúde de ferro e no entanto se fora numa manhã de verão, a mão no peito, o olhar de surpresa para ela, sem volta.
Quis ir junto. Tentou duas vezes, os filhos se alternavam na vigilância, resgatando-a com firmeza. O último neto era uma bolinha loira de olhos abertos para tudo. Não resistiu ao seu apelo de vida, e foi saindo aos poucos de dentro daquela cela sem sons e sem cores. Um pouco de carinho, um livro novo do Chico Buarque, o disco da Maria Rita, a feirinha do Largo.
Agora aquele novo inverno chegando, o primeiro sem ele. Nunca conseguiria explicar aos filhos o que sentia, mas não lhes daria mais nenhum desgosto. Se tinha que ficar, então ficaria, e levaria adiante esse corpo que não era o seu, cheio de marcas e impossibilidades.
Uma mulher vinha na direção oposta, e por uns instantes pensou ser ela mesma, os cabelos tingidos de fogo, as maçãs do rosto atrevidas, o passo firme na calçada. Mas a moça passou por ela sem vê-la, como ela mesma havia passado tantas vezes por outras mulheres, indiferente, o olhar no seu próprio futuro.
Sorriu para ela e a cumprimentou, mesmo sabendo que não teria resposta. E seguiu para o seu almoço, pensando em comprar no caminho um brinquedo para o neto.

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