AO GUSTAVO
Você já reparou que atrás dos olhos as cores são profundas, brilhantes, cortando um fundo bem escuro? Eu sei que é bem atrás dos olhos, porque já reparei que quando eles estão fechados se voltam para dentro. Como sou esperto, descobri isso tentando abrir os olhos de minha prima Dulce, quando ela estava com eles bem apertados para não ver minhas caretas tenebrosas. Dei o nome de tenebrosas às minhas caretas desde que me tornei o campeão da rua em caretas bem assustadoras, numa disputa com Maurício. Minha mãe e as mulheres em geral abominam as caretas.
Pessoas parecem passear sua condição de adultas diante de mim, e de vez em quando me alisam os cabelos e dizem: "- Que gracinha! qual é o seu nome?” - Naturalmente não digo. Meu pai disse que já foi criança, há algum tempo, e que todas as pessoas já foram algum dia. Minha avó Carmela conta estórias sobre Napoleão e Gulliver, e acho impossível que Napoleão tenha sido criança, embora Gulliver pareça mais provável. Tenho um amigo que parece ter nascido para ser adulto. Ele me disse que toma banho todos os dias, quer ser engenheiro não sei o que espacial e brinca com umas coisas cheias de pilhas e luzes. Eu não pretendo ser absolutamente nada. Se houvesse uma profissão de andarilho, então eu ia tentar.
Conheci um andarilho que vinha do Chile e ia para Aparecida do Norte, que se chamava Pedinte ou coisa assim. Você não imagina que maravilha era a vida dele: não tomava banho fazia muito tempo e também não tinha intenção de tomar; não fazia a barba, não ia cedo pro trabalho (como meu pai vai), comia o que queria, pois na minha rua todo mundo deu comida pra ele.Tinha uma bicicleta munida de coisas maravilhosas, como bandeirinhas de times de futebol, espelhinhos, retratos, uma mala cheia de objetos coloridos e jogos de botão.
Houve um tempo em que eu quis ser detetive. Isso foi quando aconteceu o tal assassinato no sobrado em frente a minha casa. Minha mãe disse que não se deve chamar assassinato a um acidente. Diz que dona Aída caiu da escada e quebrou o pescoço. Ela estava sozinha em casa e tentou descer, coisa que as pernas dela, pelo jeito, não concordaram, já que dona Aída era mulher muito velha. Muitas vezes eu tentei adivinhar a idade dela e cheguei a perguntar, mas levei uns cascudos da minha mãe. Nunca consegui entender esse mistério da idade das mulheres. Por isso classifico-as de muito novas, mais ou menos e definitivamente velhas. De todas, gosto mais das últimas. As muito novas são como minha prima Dulce, chatas e choronas. Algumas vezes levo a culpa das coisas que ela faz, como esquecer o patinete no quintal ou comer o resto da sobremesa da geladeira. As mais ou menos são as piores, cheias de pose. Dão uma importância muito grande para bobagens, como andar com uma bolsa cheia de coisas inúteis. Nunca encontrei um canivete na bolsa de minha mãe. Ela está sempre envolta numa nuvem azul de fumaça, estirada no sofá como uma gata e coberta de revistas até a cabeça. Gosto de recortar essas revistas e então ela fica muito zangada. As muito velhas são engraçadas, sempre cheias de balas e contam estórias, como minhas avós e dona Aída.
Minha mãe disse algo como ela ter vivido "pra valer" quando era nova. Perguntei como era isso e ela me mandou assistir desenho na televisão, me retirando da cozinha e da conversa. Dona Aída não tinha filhos e eu não entendo como uma mulher tão velha pode não ter filhos (minhas avós tiveram uma porção, que eu vejo de vez em quando, no natal e no carnaval). Dona Aída tinha um parente, seu Inácio, um homem também muito velho e muito gordo. Esse seu Inácio vinha de vez em quando visitá-la e trazia caixas de bombom de cereja. Naturalmente eu estava sempre por perto. Posso farejar um chocolate a quilômetros de distância, só pelo tamanho e embalagem da caixa ou volume dos bolsos. Até desenvolvi uma técnica de chegar como quem não quer nada e olhar com surpresa e felicidade para o chocolate em questão. Quando não dá certo (alguns adultos fingem não me ver), eu abro a boca e arregalo os olhos. Se a gente não pisca, eles se enchem de lágrimas. O adulto então pensa que eu estou chorando e me dá um pedaço ou até o chocolate inteiro. Com minha mãe não dá certo. Ela sabe que eu só choro quando tomo injeção ou mediante palmadas no traseiro, quando, por motivos que desconheço, ela se põe a gritar com as mãos na cabeça e corre até me alcançar. É uma luta correr mais que ela. Acho que todas as mães poderiam apostar corrida, como às vezes aparece na televisão, depois do natal. A mãe do Carlinhos corre mais que a minha, porque ela treina com mais uns cinco filhos.
Seu Inácio era mesmo um tipo suspeito. No dia do acidente/assassinato, eu o vi com uma lata de graxa na mão, no alto da escada. E levou um susto quando me viu, até me deu uma nota de cinco reais para comprar sorvete. É claro que me queria fora da cena do crime. Para mim, seu Inácio engraxou a escada para dona Aída cair e ganhar o seguro de vida! Ou então, havia um tesouro enterrado no fundo do quintal, do tempo dos piratas franceses e seu Inácio descobriu o mapa. O certo é que dona Aída caiu e quebrou o seu velho pescoço. E que seu Inácio vendeu a casa, não sem antes deixar o quintal todo esburacado. Nunca mais o vimos. E também ninguém acreditou em mim, mesmo depois de eu ter contado tudo que sabia, e meu pai me proibiu de ver os filmes do Monk na televisão. Do que eu pude deduzir, as crianças não podem ser detetives, porque os adultos não acreditam nelas, e quando crescem também não vale a pena. Segundo meu pai, tudo o que o Monk faz é só no filme.
Outra coisa que eu quero ser é solteiro. Não posso imaginar porque alguém cresce e faz coisas como casar. Meu pai é um homem casado. Nunca havia me dado conta disso, até que um dia, numa dessas visitas de natal, minha avó Inocência deixou escapar esta frase: "- foi no tempo que Gilberto casou." - Gilberto é meu pai. Foi como se o mundo caísse na minha cabeça! Meu próprio pai, que me parecia tão esperto (ele sabe jogar botões e faz as pipas mais bonitas que eu já vi) era casado! E descobri que minha mãe era sua mulher. Minha avó Carmela me mostrou um álbum que ficava bem no alto da prateleira da sala, cheio de fotografias do tal casamento, onde, coisa estranha, eu não aparecia. Fiquei tão chocado com tanta coisa feita à minha revelia e sem que nunca ninguém tivesse se dado ao trabalho de me contar, que foi daí que minha fé nos adultos ficou irremediavelmente abalada. Claro, eu era muito pequeno naquela época. Descobri depois que pai e mãe primeiro se casam, depois vêm os filhos, trazidos segundo as avós por cegonhas, grandes aves que chegam da Itália, ou por sementinhas de pássaros e borboletas, segundo minha mãe.
Um homem solteiro, feito tio Alberto, não precisa ir ao supermercado todo fim de semana, nem participar das reuniões da Sociedade Amigos da Vila Paraíso. Ele viaja todo o tempo no seu caminhão, o que não deixa de ser um andarilho motorizado. Talvez eu mude de idéia e seja um motorista de caminhão.
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